Sideral
A
sala de recepção do ateliê de costura estava cheia.
As mulheres, todas eufóricas, comentavam todos os tipos de assuntos,
aguardando a prova de seus vestidos. Foi então que entrou a mais
aguardada delas: Suzana.
Não
se pode dizer que 25 anos de casamento é pouca coisa. Suzana
entendia perfeitamente o significado disso, ainda mais por estar numa
estatística exígua e cada vez mais rara: a das mulheres casadas e
felizes. Ela era, muito, muitíssimo feliz. Era muito invejada por
isso, mas não ligava, pois estava acima desses sentimentos
mesquinhos.
Tinha
conhecido Flávio ainda na adolescência. Ele frequentava o colegial
e ela ainda no ginásio. Ficava espiando pela janela da sala de aula
quando ele entrava no colégio. Era com certeza o garoto mais bonito
da escola inteira. Nem era; Flávio era um varapau que só falava com
meia dúzia de garotos. Era zoado por ser “certinho” demais e
usava uma calça xadrez medonha junto com o uniforme. Mas Suzana
gostava e ficou corada quando foram apresentados na festa da
primavera, que na verdade aconteceu no verão de 1969.
E
agora estavam comemorando 25 anos de casados! E todos, todos eles
muito felizes. Sim! Ela era o exemplo de que amor é pra vida toda.
Era possível ver o mesmo brilho nos olhos que foi visto no dia do
seu casamento.
-Vamos
lá? Quero ver como ficou.
Dona
Brígida estava quase ficando maluca. Havia no mínimo dez mulheres
para fazer a prova dos vestidos. Suzana fez questão de que ela
fizesse todo o trabalho, incluindo sua filha e convidadas. O trabalho
feito em seu casamento nunca fora esquecido: virou marca. E por
tradição (ou superstição) Suzana resolveu
que Dona Brígida faria novamente a sua roupa de casamento.
O
tempo havia sido extremamente generoso com Suzana. Com 45 anos
completos, três filhos e uma casa para administrar ela
conservava-se muito bela e atraente. Os olhos levemente puxados,
cabelos castanhos escuros sem qualquer resquício de grisalho, pele
bem cuidada e silhueta de dar inveja a muitas moças davam a Suzana
milhões de motivos para se sentir superior e ainda assim
não era. Ela era feliz. Era amada por seu marido, por seus filhos,
por seus amigos. Isso já bastava.
O
vestido lhe caiu como uma luva. Escolheu um tom perolado bem próximo
do branco, com corte elegante e discreto.
-
Incrível!
-
Você tem um corpo bom, Su. Sempre teve.
Dona
Brígida já estava acostumada ao talhe da cliente. Fazia as roupas
de Suzana há anos.
Dando-se
por satisfeita. Suzana deixou que as demais mulheres fizessem a
prova. Flavinha, a filha do meio, abraçou a mãe carinhosamente.
-
Ah, mãe... estou tão feliz por você!
Suzana
a afagou
com carinho. Flavinha era sua maior companheira. Única filha mulher,
tornou-se sua maior confidente; não herdara a beleza da mãe, era
grande e desengonçada como o pai. Mas o que lhe faltava em beleza
lhe sobrava em empatia e gentileza.
As
duas foram pra casa onde a família aguardava para o almoço. Flávio
tinha prometido cozinhar naquele dia e Suzana estava ansiosa para
saber como o marido tinha se saído. Os outros filhos também estavam
lá: Rodrigo, o mais velho, a cara de Suzana. Era um rapaz de
pouca conversa, mas que fazia sucesso imenso com as mulheres. Era o
único que morava sozinho. Havia terminado a faculdade de jornalismo
e agora vivia de free lance; Suzana teve dificuldade em aceitar que
ele fosse embora de casa, mas o filho foi irredutível. Era a hora de
pular do ninho e acabou. Cláudio, o mais novo, ainda dava trabalho.
Enganchou no ensino médio e tinha convicção de que estudar era
perda de tempo. Claro que Suzana discordava e para não desapontar a
mãe, Cláudio continuaria enrolando o quanto pudesse.
Era
preciso reconhecer que Flávio tinha feito um excelente trabalho. A
mesa estava posta de maneira muito organizada, com toda a louça
arrumada e um improvisado buquê no meio.
-
Nossa! O que temos aqui!
Suzana
reparou que era uma das louças que havia ganhado de presente de
casamento. Isso em 1975! Com exceção de uma lasquinha em uma
terrina, estava tudo como no dia que recebeu. Ela não se lembrava
mais de quem tinha ganhado.
-
Papai! Que mesa linda! - Flávia também reconheceu o desvelo do pai.
A
comida era simples mas muito bem feita. Todos elogiaram e apreciaram
a iniciativa do pai, que não tinha muitas oportunidades de fazer
isso. A vida de funcinário público do Estado lhe tomava boa parte
do tempo. Como Suzana optou por
não trabalhar fora (mesmo concluindo o ensino normal e podendo dar
aulas) a casa ficou sob seus cuidados.
Flávio
resolveu fechar o encontro com chave de ouro. Levantou o copo de
refresco de laranja e brindou com entusiasmo.
-
Amanhã vou comemorar uma das melhores coisas que aconteceram na
minha vida. Há 25 anos sou casado e agora quero que todos que estão
perto de nós saibam o quanto estou feliz por estar ao seu lado,
Suzana. Você é a pessoa mais importante da minha vida, junto com
nossos filhos.
Todos
aplaudiram. Suzana tinha os olhos marejados e não conseguiu dizer
nada. Rodrigo resolveu arrematar.
-
Vocês tem muita sorte. Hoje em dia é raro um casamento assim.
Suzana
concordou com a cabeça.
-
Sim...é. Eu e seu pai tivemos sorte. Nosso amor é pra sempre.
Terminado
o almoço os homens foram para a sala e Suzana, junto com Flavinha,
foram para o quarto separar as fotos que passaria no telão, na hora
da festa. Havia muita coisa, pois a família sempre fez questão de
registrar os momentos em comum em fotografias. Suzana foi colocando
os álbuns em cima da cama para que elas pudessem separar as
melhores.
-
Nossa... quanta coisa!
Aos
poucos tudo ficou à
disposição para a escolha. À
medida que Suzana
ia olhando as fotos as lembranças iam emergindo. Quantos anos já
tinham passado desde a primeira vez que tinha beijado Flávio! Foi um
beijo meio sem jeito, mas muito gostoso. Lembrou-se dos amassos no
Maverick cor de abóbora depois do cinema, em que ela tinha de conter
os avanços mais afoitos do namorado, pois moça que se preserva não
deixa essas coisas. Com o tempo a mão ia e ela deixava
um pouco mais, até o dia em que não aguentaram mais e ele a pediu
em casamento. Lembrou-se da formatura dele em técnico contábil e do
vestido azul turquesa que usou; da viagem para Santos na lua-de-mel,
da gravidez repentina de Rodrigo, das festinhas de aniversário das
crianças, da festa de 15 anos de Flavinha. Era toda uma vida em
papel impresso, para todo o sempre.
-
Já sabe quais vai escolher, mãe?
-
Hum...não sei
Era
difícil. Tantos momentos felizes! Foi separando todas as que tinham
significado mais emblemático. Ficaria uma linda homenagem. A ideia
do telão tinha sido de Cláudio.
-
Gostei, mãe! Estas são ótimas!
Suzana
olhou para o entusiasmo da filha com ternura e pena. Apesar da
candura que havia em Flávia, sabia que suas chances não eram tão
grandes. Tinha um bom emprego, de enfermeira, que lhe garantiria
cuidar da própria vida e sobrevivência. Sentiu um nó e um pouco de
culpa. Ela era mesmo uma mulher de muita sorte.
-
Bom... está tudo aí. Como o tempo passou rápido! A festa já é
amanhã!
-
Sim, mãe! Amanhã!
As
duas sorriram, cúmplices de um evento que sabiam ser precioso, ao
menos para elas.
As
duas foram para a sala chamar os demais para comer sobremesa na
cozinha.
-
Confesso que estou ansiosa – Suzana confidenciou ao marido
-
Não fique. Só mais algumas horas – Flávio ponderou.
A
tão grande noite chegou. Suzana e Flávio renovariam os votos na
mesma igreja onde haviam casado. Todos os convidados apareceram; era
preciso reconhecer que eles era muito queridos. Os filhos estavam na
primeira fileira, com exceção
de Rodrigo que conduziu a mãe até o altar.
O
padre fez uma fala bonita, exaltando a importância do respeito, do
amor e da paciẽncia em um casamento. Todos ficaram emocionados, mas
ninguém mais que Suzana. Quase
foi necessário retocar a maquiagem várias vezes.
Após
a cerimônia na igreja, todos seguiram para a festa. O salão estava
todo decorado com rosas chá, as preferidas de Suzana. Foi mais uma
surpresa do marido.
-
Você é mesmo incrível...
-
Você merece.
Tudo
estava absolutamente perfeito. O vestido dera a ela um ar sensual e
ao mesmo tempo sóbrio. Flávio usava um belo terno cinza e estava
muito elegante. Ao longe, em uma das mesas, Dona Brígida sorria
silenciosamente, orgulhosa por ter feito mais um trabalho com louvor.
Os
convidados comiam, bebiam e conversavam entre si. O bolo e os
docinhos seriam servidos após a valsa, para desespero das crianças
que montaram guarda ao redor da mesa de sobremesas.
Suzana
estava em estado de graça. Aquele era seu momento se celebrar a
vida, de agradecer aos céus a sua felicidade.
Olhava os filhos, todos maravilhosos e encaminhados como troféus.
Eram seus prêmios, suas dádivas. Olhou o marido, seu companheiro da
vida, seu homem, seu amante, seu amigo. Quem poderia olhar pra
própria vida e dizer “está tudo bem sempre”, como ela?
Era
chegada a hora da valsa. Flávio escolheu uma música especial para
eles: Elvis Presley. Suzana achou graça quando o marido não lembrou
o nome da música e cantarolou para o dj.
-Ah!
É essa aí...
Os
dois se abraçaram. Apesar de ser desengonçado, Flávio dançava
muito bem. Foi conduzindo a esposa de forma sutil, quase flutuando
pelo salão. Os outros casais foram chegando para fazer o baile.
Era
lindo como tudo estava fluindo. A música, a dança, os convidados
dançando. Suzana , em vários momentos, pensou estar em um sonho. As
luzes, a atmosfera etéria que a fumaça dava ao ambiente muito
contribuíam para isso. Ela fechava os olhos só pra abrir novamente
e ter certeza de que era realidade. Se recostava no marido para
sentí-lo, apertava-o para certificar-se de que ele estava realmente
ali. A música de Elvis entrava por seus ouvidos e às vezes se
perdia em seus devaneios. Era tudo um sonho. Era sua realidade. Era
sua vida.
Suzana
olhou para cima e viu que o teto em abóbada do salão era de vidro.
Não um vidro opaco, mas muito transparente. Era possível ver o céu
cravejado de estrelas. Nada podia ser mais perfeito... além de tudo
aquilo ainda havia o céu, no seu esplendor, brindando com ela em sua
festa de 25 anos de casamento!
Suzana
baixou o olhar para olhar nos olhos do marido. Viu o mesmo olhar do
rapazinho de 1969. Ainda era ele, ali. Era seu namoradinho, o homem
de sua vida.
Subitamente
Suzana parou. Olhou o marido, que ficou sem saber exatamente o que
fazer. Suzana tinha o rosto inexpressivo, mas não triste. Caiu nos
braços do marido, que ao tentar ampará-la também caiu. Todos
ficaram estarrecidos e foram ver como podiam ajudar em alguma coisa.
Suzana
morreu ás 22:47, de infarto fulminante. Não houve tempo para fazer
absolutamente nada. O marido, em choque e ininteligível, gritava por
socorro entre balbucios. Os filhos, desesperados, corriam para lá e
para cá, sem saber o que fazer. Havia uma tristeza profunda por todo
lado.
Ninguém
percebeu, porém, o rosto de Suzana. Caída no chão, em seu lindo
vestido de festa, estava com a expressão mais feliz do mundo. Seus
olhos lhe lembraram que estava morta e se fecharam, dando-lhe o ar de
sono eterno. Quando a ambulância chegou, inutilmente tentaram
reanimá-la, mais para dar uma falsa eficiência à família do que
por saber o que estavam fazendo.
Dona
Brígida, na sua mesa, na sua cadeira, não se moveu. Viu assustada
toda aquela tragédia e lembrou-se de uma frase da mãe. A felicidade
é algo sobreumano; nossa mortal condição humana não comporta
tamanha grandeza.
Comentários
Postar um comentário