Eu Maior

O avião havia pousado no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, às 7:15 da manhã. Jean-Marie seguarava a filha com cuidado, pois a aterrisagem tinha assustado muito a menina. Claudine, ao seu lado, estava exausta. Tinha mil pensamentos na cabeça sobre a nova vida que os esperava no Brasil. Deixara tudo para trás: suas referências, sua carreira, sua identidade; tudo em nome de uma causa maior: Maelle.
A pequena Maelle era só alegria. La petit Maelle, la fleur du champ. Seus olhos grandes e curiosos olhavam pela janelinha a cidade cheia de montanhas que agora seria a sua cidade. Aos quatro aninhos, tudo que queria agora era uma cama bem quentinha e um pedaço de broa para comer. A comida do avião era muito ruim.
- Chegamos! - Jean-Marie foi ajudar a esposa a pegar a valise.
A pequena família havia deixado a Costa do Marfim em busca de dias melhores. Jean-Marie estava desempregado havia tempo, desde que foi demitido do banco. Claudine, uma professora de literatura, viu no desânimo do marido o começo de uma depressão; era hora de partir, ela pensou. Em nenhum lugar da África tinham chances de se reestabelecer. Europa estava fora de cogitação: o que não faltava ali eram migrantes pobres querendo ganhar dinheiro e sendo maltratados pelos nativos. O Brasil era muito parecido com a Costa do Marfim: quente, caloroso e aconchegante.
Porém, a realidade foi outra. Mesmo com todas as qualificações do casal, não conseguiam nada além de trabalhos temporários e em condições degradantes. Uma única coisa seria poupada: Maelle. O pai fez questão de que a menina estudasse na melhor escola que seu parco salário pudesse pagar. A mãe tomava suas lições rigorosamente em casa; faziam passeios, ia a museus e faziam do Rio de Janeiro o palco cultural de que a menina precisava.
Claudine havia conseguido um emprego em uma livraria. Apesar de toda sua bagagem (era doutora em literatura) a tratavam com desdém; não poucas vezes tinha sido vítima de racismo ou de xenofobia. Um dia, não suportou a humilhação de ser recusada para atender uma senhora, que não queria ser atendida por “ uma negra”. Pediu demissão e foi junta-se ao marido, dando aulas de francês em casa.
Maelle crescia. A situação da família não era ruim, mas estava longe das expectativas de Jean-Marie. Ganhavam o suficiente para as contas e viviam pescando vantagens aqui e ali. Jean-Marie havia se oferecido voluntariamente para dar aulas de francês em troca da mensalidade da escola de Maelle. Isso ajudaria muito no final do mês.
O tempo passava e Claudine via a vinda para o Brasil com frustração. Estava em um país onde negros eram chamados de “macacos” por gente que não era branca, onde estrangeiros eram responsabilizados pela crise do país e marginalizados. Ela não havia saído de seu país para isso. Por mais pobre que fosse a Costa do Marfim era a sua terra e tudo que aprendera a amar estava lá. Nunca esqueceu o dia que sua mãe a abraçou pela última vez, no aeroporto, com lágrimas nos olhos, pedindo para que ela tentasse, ao menos. Ela tentou, mas não conseguia driblar seus conflitos internos.
Maelle estava com 14 anos. Dez anos no Brasil. Falava um português com sotaque carioca, mas em casa falava em francês com os pais. Estava concluindo o último ano do ensino fundamental no colégio Pedro II, onde com custo conseguiu uma vaga, por intermédio do pai. Educação é tudo, dizia ele. Junto com Claudine faziam trabalho voluntário na biblioteca e dava aulas de francês. Logo ficaram amigos dos professores, sobretudo de Clarice, professora de arte.
O interesse da menina pelas aulas de Clarice era visível. Maelle tinha uma habilidade incrível com as expressões artísticas, sobretudo artes visuais. Tinha muito talento e criatividade. Clarice a estimulava com elogios e isso causava incômodo em alguns alunos, o que para Maelle era indiferente.
A escola resolveu organizar uma feira multidisciplinar, onde os alunos poderiam se inscrever em várias categorias, em pequenos concursos. Maelle ficou muito interessada na oficina de Arte&Publicidade, pois os vencedores seriam contemplados com prêmios e medalhas, além do que seu trabalho poderia ser publicado em uma conceituada revista de decoração. Começou então a pensar no que iria criar. Deveria ser autêntico e ter impacto; não podia ser uma coisa comum.
Lembrou-se da história de seus antepassados, na Costa do Marfim. Seu país de origem era um grande produtor de abacaxi, exportando boa parte para a Europa. O Brasil tinha no abacaxi um dos seus símbolos de tropicalidade. Perfeito!
-Eu sou uma gênia – pensou baixinho.
Maelle pegou emprestada a ideia da pop art de Andy Warhol. Dividiu uma tela em quatro quadrantes, desenhando em cada um abacaxis em cores básicas: amarelo, azul, vermelho e verde. Criou um fundo bem vibrantes para cada um e finalizou com traços pretos bem marcantes. Era quase inacreditável que ela tivesse feito tudo sozinha. Mas fez.

Claudine ficou visisvelmente encantada com o trabalho da filha.
-Acho difícil alguém ganhar esse concurso. Você vai ganhar.
Jean-Marie também incentivou a filha, dando-lhe um forte abraço.
-Está maravilhoso, ma petit.
O grande dia tinha chegado. Maelle não conseguia esconder sua euforia, até porque a professora Clarice tinha ficado muito satisfeita com seu trabalho.
-É muito original...Você tem muito talento!
Vários alunos tinham feito inscrição para participar. Maelle viu quando Clara, uma das alunas de sua sala, colocou o seu trabalho em um dos tripés. Ela havia pintado um castelo, nada demais. Era uma figura realista que copiava nos mínimos detalhes um castelo em estilo medieval. Talvez estivesse concorrendo em uma categoria diferente da sua.
Todos os trabalhos foram expostos pela professora Clarice, que fazia a descrição de cada um deles de maneira entusiasmada. A cada apresentação havia aplausos. Finalmente havia chegado a vez de Maelle.
- Inspirada na pop art de Andy Warhol, Maelle Duvier, do nono ano, nos mostra como Costa do Marfim e Brasil tem muito em comum: aqui está o abacaxi pop!
Clarice quis fazer mais uma colocação.
-Como se fala abacaxi em francês?
-Ananas
-Temos o Ananas Pop!
Os aplausos vieram, pricipalmente de Claudine e Jean-Marie. Esatavam muito confiantes, não no prêmio, Mas no talento da filha.
Clarice saiu para atender um chamado da diretora com a tela de Maelle nas mãos. Percebendo isso, a menina foi atrás para ajudá-la. Algo a conteve do lado de fora da sala da direção.
-Vamos ajudar. A gente dá a premiação para ela...
-Hum...mas e o quadro da Clara? A mãe está decidida que o dela é o melhor.
-Mas se dermos o prêmio para o da Maelle podemos ajudar a família. Tem o prêmio e...
Maelle não quis terminar de ouvir. Agora conseguia entender tudo. Não era admiração o que a professora Clarice sentia por ela: era pena. Cada elogio agora soava como brasa queimando sobre ela. Ela, a menina negra e imigrante que precsiava ser ajudada na escola de classe média da cidade do Rio de Janeiro, agora estava ser ar dentro do banheiro, querendo qualquer objeto cortante para estraçalhar aquela porcaria que estava nas mãos daquela branca arrogante que ousava humilhá-la. Sentiu uma lágrima descer pelo seu olho direito e mais outras depois em ambos os olhos. Maelle havia provado um sentimento que mal conhecia: a raiva. Ouviu alguém chamar por ela.
-Maelle! A premiação! Vai ser agora!
Chamaram os “ganhadores” no palco do anfiteatro e seguiram na sequência dos lugares. Maelle seguiu todo aquele protocolo nojento com a dissimulação mais convincente do mundo.
-Em primeiro lugar: Maelle Duvier!
Vários aplausos e a cara emburrada de Clara ao seu lado não a afetaram.
Clarice veio com a bandeja com as medalhas. Maelle finalmente se pronuncionou.
-Eu abro mão do prêmio. E da medalha também.
Clara ficou sem enterder.
-Como assim, Maelle? O que aconteceu?
-Eu não quero a medalha. E nem o prêmio. Estou desistindo do concurso.
E sem dizer mais nada pegou a tela que descansava sobre o tripé e saiu, para a perplexidade de Clara e de todos. Jean – Marie e Claudine foram atrás da filha, que passou por eles sem dizer nada também.
Maelle tinha seu orgulho, sua dignidade. Não queria que ninguém no mundo sentisse pena dela; definitivamente ela não precisava disso. Sabia do valor que sua criação tinha e não ia ficar grata a elogios de mentira. Não ia vender seu tempo, seu talento e sua arte a uma professora fingida; não ia querer aplausos de misericórdia daqueles que seguem o padrão do “politicamente correto”. Não ia ser uma medalha de merda que iria mudar sua convicção de valores.
Os pais de Maelle a encontraram no quarto pendurando seu quadro na parede. Tomaram conhecimento do que havia acontecido e apoiaram inteiramente a filha. O pai estava decidido a mudar a filha de escola, pois sabia que depois do que aconteceu ela não iria querem voltar lá.
Dias depois estavam embarcando para uma viagem de férias à Costa do Marfim. A família toda sentia que era necessário buscar uma conexão entre seu passado e seu presente. Maelle estava pensando mil coisas, quando o avião subiu.
-Aceita uma bebida ?– a aeromoça ofereceu.
-Uma água – Maelle queria molhar a boca que estava seca.


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