Paladina



Se tinha uma coisa que toda a favela sabia era da força e coragem de Dalva. Tinha chegado com os pais da Bahia no intuito de fazer dinheiro, porém a única coisa que fizeram foram mais 5 filhos pra somar aos quatro que vieram do Nordeste no pau-de-arara.
Cada um tomou um rumo na vida. Três morreram pequenos ainda; a pobreza não tem critério. Via a mãe sepultar os filhos com a resignação de quem sabe que a vida não é justa, quanto mais pra pobre. Os que sobreviveram, passando fome ou tristeza, já estavam com o couro duro pra qualquer paulada. E seguiram seus destinos.
Apesar de tudo Dalva vivia sua vida bem. Trabalhava há anos como empregada doméstica na mesma casa, com a mesma família. Não teve chances de avançar nos estudos e sempre foi boa de serviço. Lavava, passava, cozinhava e arrumava com a rapidez de um raio.
A única nuvem no horizonte da vida de Dalva era o filho Bernardo. Para seu infortúnio (ou bênção) teve complicações no parto que a impossibilitaram de gerar outros rebentos. Ainda bem. Bernardo consumira todas suas expectativas com relação a maternidade. Desde cedo dera trabalho. Aos 7 anos, foi pego roubando geleia de mocotó no boteco do Gera e apanhou na frente de todo mundo. Dalva tinha mão pesada e mesmo a pedido do marido deixou o moleque todo lanhado.
- Não crio filho ladrão! - esbravejava.
Com a morte do marido, a situação de Bernardinho, como o chamavam, só piorou. Mesmo com as surras homéricas que a mãe dava ele vivia aprontando. Era reclamação na escola, na rua, dos vizinhos. Dalva meteu o filho na catequese para ver se melhorava sua índole.
- Deus sabe o que faz. Na hora certa ele vai mudar.
Mas não mudou. Com treze anos foi acusado de furtar a bolsa de uma professora, na escola. Vendeu o talão de cheques dela para um outro moleque que, ao tentar usar pra comprar uma bicicleta numa loja foi descoberto. E chegaram em Bernardinho.
Dalva o surrou no meio da rua com a cinta do marido morto, que ficou pendurada na parede para devido uso. Quando já não aguentava mais apanhar, levantou-se no chão, imundo e olhou a mãe com ódio.
- Velha lazarenta!
A mãe desferiu-lhe um tapa sonoro na cara. Ele saiu correndo e nunca mais voltou pra casa.
Não mais de uma vez Dalva foi atrás do filho. Ele sempre deu jeito de sumir e não ser encontrado. Um dia, quando ela estava preparando o almoço dos patrões, soube pelo oficial de justiça que seu filho tinha sido preso. Assaltou uma mulher grávida e ao tentar puxar a bolsa a fez cair. Ela perdeu a criança. Ele foi acusado por homicídio e ficaria na instituição até chegar a maioridade.
Neste dia Dalva chorou como criança. Perdera o filho para o mal. Pegou o tercinho de ouro que a patroa lhe dera de presente, trazido de Portugal e rezou. Rezou baixinho, pedindo pra Deus ajudar seu filho a encontrar rumo na vida.
Todas as vezes que tentou visitar Bernardino foi enxotada. Ele não perdoava a humilhação de apanhar em público, na favela. Até que Dalva se cansou daquilo. Pegou o bolo de milho de tinha feito pro filho e foi-se embora.

O tempo passou e finalmente Bernardinho fez dezoito anos. Ia sair da prisão. Dalva, precavida de que o filho não queria vê-la não apareceu. Mandou seu irmão Orestes buscá-lo.
- Num vô pra canto nenhum, não! - Bernardinho nem esperou o tio chamar novamente.
Saiu com a trouxinha de roupa correndo, sem deixar sinal.
A vida seguiu como sempre segue. Dalva chegava em casa do trabalho e acendia uma vela sob o pé do oratório, para Nossa Senhora Aparecida. Ela não falharia com ela. Um dia o coração de Bernardinho amoleceria e ele ia ver que não compensa ser essa coisa ruim que era. A patroa apoiava, pois gostava muito de Dalva sempre com a ressalva de que o filho jamais aparecesse em sua casa. Dalva não era doida de por a confiança da patroa a perder. Confiava apenas na misericórdia divina.
Mas as coisas são como são. Em pouco tempo as notícias vieram: Bernardinho estava preso, de novo. Tomara gosto pela vida do crime, tinha verdadeira facilidade para o desvio de conduta e não sentia nenhum remorso com isso. Havia atirado em um policial. Ia ficar mais sete anos preso.
Dalva não chorou dessa vez. Deu o filho por perdido. Continuou a fazer suas preces, pedindo forças a Deus para seguir em frente. Ia a missa, rezava com fervor. Seu coração se acalmou e ela continuou a trabalhar com entusiasmo e alegria. Resolveu ajudar na igreja como catequista, ensinando as crianças e jovens o caminho do bem e de Deus.
O irmão, Orestes, ia ver Bernardinho na cadeia. Dalva proibiu o irmão de trazer notícias do filho; já o renegava. Se ele não a considerava mais sua mãe, ela também não o queria como filho.
Um dia, como quem não quer nada, Dalva viu um rapaz subindo com uma malinha na mão a ladeira que dava acesso a favela. O reconheceu imediatamente: era Bernardinho.
Dalva ficou parada olhando sem conseguir dizer nada. Ele por, sua vez, foi-se chegando. Tinha a expressão serena e estava bem arrumado.
-Oi mãe.
Dalva não conseguia dizer uma palavra. Orestes, o irmão mediador, veio atrás acudir.
-Olha, Dalva. Ele saiu da cadeia por bom comportamento. Quer começar vida nova. Quer seu perdão. Vamo ajudar o menino.
Ele já não era um menino. Era um homem feito. Os olhos, porém, eram os mesmos. Olhos fixos, olhos mortais.
Dalva continuava imóvel.
-Eu vou passar um tempo aqui com vocês. Ajudar vocẽ, mana. Tudo vai melhorar, cê vai ver.
Bernardinho chegou para abraçar a mãe e então ela cedeu. Abraçou o filho com uma dor enorme, que não conseguia nominar.
Pois bem; coração de mãe é enorme mesmo. Bernardinho ficou e Orestes já tratou de arrumar emprego na construção pra eles. Os dois iam trabalhar juntos, sob a supervisão do tio. Orestes estava aberto a ajudar no que fosse possível. Dalva arrumou as roupas do filho na gaveta que outrora fora do marido. Ia fazer esforço verdadeiro para esquecer tanta afronta e ingratidão.
A patroa ficou feliz em saber do que tinha acontecido. Mas lembrou Dalva de não levá-lo até lá.
-A senhora fique sossegada. Aqui ele não vem.
Mas nenhuma promessa é passível de nunca ser descumprida. Um dia, ao sair do trabalho, deu de cara com o filho a esperando na porta.
-Vim buscar a senhora.
-Cumé que você sabe que eu trabalho aqui?
-O tio falou.
Mentira. Orestes não sabia o endereço do emprego de Dalva.
- Falou nada. Ele não sabe o endereço daqui.
-Mas ele falou. Pode perguntar.
-O que que cê quer?
-Nada. Só vim te esperar.
Naquele momento, o coração de Dalva ficou aflito de novo. Mais era preciso acreditar em Deus, em Nossa Senhora, que não falharia com ela. Voltaram pra casa em silêncio, para o alívio de Dalva, que não queria ouvir seus pensamentos alto demais.

Era sexta-feira. Era dia do pagamento de Dalva e ela já sabia o que faria com o dinheiro. Pagaria todas as contas e quitar a última parcela do seu sofá novo. Se deve certo, iria comprar uma cama pro irmão. Orestes estava dormindo no sofá desde que Bernardinho chegou da cadeia. Ficou preocupada com o irmão. Desde que se separou da mulher andava errante por aí, cada hora num lugar. Mas era bom tê-lo por perto: era uma falsa sensação de segurança.
Dalva abriu a porta da cozinha da patroa e entrou. Estava tudo em silêncio e Dalva estranhou. Àquela hora os patrões já estavam tomando o café. Dalva resolveu ir até a sala para ver o que estava acontecendo.
O rosto de Dalva perdeu todo o sangue que corria. Amarrados, os patrões estavam sentados no sofá, amordaçados com pedaços de pano. Seus rostos em pânico. A filha caçula, sob a mira de um revólver, estava nos braços de Bernardinho. A mãe não havia percebido que ele havia saído antes dela. Tinha chegado cedo e estava botando seu plano que tinha elaborado em ação. Nunca houve nenhuma mudança. Nunca houve nenhum perdão. Bernardinho a odiava. Nunca amou ninguém na vida, nem o pai. Era cria ruim, fruto podre do seu ventre dilacerado.
-Pega todo o dinheiro deles e bota no saco!
Dalva sentiu suas pernas tremerem. Preferia estar morta a ter de ver aquilo.
-Vai logo! Agora eu vou me divertir um pouquinho com essa gata aqui.
Ao ouvir aquilo a moça começou a debater-se, para se livrar de seu algoz. Na luta, o revólver que estava na mão de Bernardinho voou longe. Ao tentar pegá-lo, a moça o puxou e imediatamente levou um soco na cara.
Agora era Dalva que segurava o revólver. Arrumou forças do céu e do inferno para pegar aquela arma e apontar para o filho. Sua mira era firme.
-Solta a moça, seu desgraçado!
Bernardinho riu. Apertava o pescoço da moça com uma chave de braço.
-Você não vai atirar...
-Solta a moça. Já falei, desgraça!
Bernardinho soltou. Olhou a mãe com desprezo; o mesmo desprezo que teve há anos atrás, quando levou uma surra, na favela.
-Você não vai não. Quer ver?
E sem nenhuma compaixão foi pra cima da mãe.
Dalva só ouviu o estampido do último dos três que disparou. Certeiros, foram todos no peito de Bernardinho. Ele estava morto. Os patrões, apavorados, se debatiam para tentar se soltar. A moça, com o rosto machucado, jazia no chão, ainda sem entender como conseguiu se livrar daquele verme.
-Maldita a hora que eu te pus no mundo, desgraça!

Quando a polícia arrombou a porta, viu Dalva firme como um rochedo, com a arma na mão. Os patrões se prontificaram a dar todos os esclarecimentos, depois que saíssem do hospital. Dalva foi presa para averiguações e a favela já está toda mobilizada para tirá-la de lá. Já fizeram vaquinha para o advogado e uma grande festa está sendo organizada para recebê-la. O mal havia sido eliminado. 

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