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Mostrando postagens de setembro, 2017

Demônio

A frieza de Tércia era algo que nos fazia pensar sobre a ideia de docilidade inerente das mulheres, quiçá da própria condição humana. Glacial, meticulosa em seus gestos, dificilmente seria modelo de candice, amor e maternidade. Tinha o olhar gélido e inclemente, talvez até assustador. Mas é preciso entender algumas coisas. Aos seis anos, viu sua mãe pela última vez. Ela carregava malas de um lado para o outro; Tércia viu que um homem dentro de um carro guardava tudo no porta malas. O pai, sentado na cama do quarto, chorava em silêncio. -Um dia talvez você me perdoe, filha. Mas você vai me entender, eu sei. E sem olhar para trás partiu. Tércia não sentiu raiva, não sentiu tristeza, não sentiu nada. Detestava a comida da mãe, sem tempero e sem graça. O pai por sua vez parecia ter recebido uma punhalada. Ficou dias chorando: ora no quarto, ora no sófa da sala, ora na garagem. A fraqueza, os hábitos comedidos, a falta de energia, o ar deprimido do pai lhe davam repulsa....

Eu Maior

O avião havia pousado no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, às 7:15 da manhã. Jean-Marie seguarava a filha com cuidado, pois a aterrisagem tinha assustado muito a menina. Claudine, ao seu lado, estava exausta. Tinha mil pensamentos na cabeça sobre a nova vida que os esperava no Brasil. Deixara tudo para trás: suas referências, sua carreira, sua identidade; tudo em nome de uma causa maior: Maelle. A pequena Maelle era só alegria. La petit Maelle, la fleur du champ. S eus olhos grandes e curiosos olhava m pela janelinha a cidade cheia de montanhas que agora seria a sua cidade. Aos quatro aninhos, tudo que queria agora era uma cama bem quentinha e um pedaço de broa para comer. A comida do avião era muito ruim. - Chegamos! - Jean-Marie foi ajudar a esposa a pegar a valise. A pequena família havia deixado a Costa do Marfim em busca de dias melhores. Jean-Marie estava desempregado havia tempo, desde que foi demitido do banco. Claudine, uma professora de literatura, viu no desân...

Paladina

Se tinha uma coisa que toda a favela sabia era da força e coragem de Dalva. Tinha chegado com os pais da Bahia no intuito de fazer dinheiro, porém a única coisa que fizeram foram mais 5 filhos pra somar aos quatro que vieram do Nordeste no pau-de-arara. Cada um tomou um rumo na vida. Três morreram pequenos ainda; a pobreza não tem critério. Via a mãe sepultar os filhos com a resignação de quem sabe que a vida não é justa, quanto mais pra pobre. Os que sobreviveram, passando fome ou tristeza, já estavam com o couro duro pra qualquer paulada. E seguiram seus destinos. Apesar de tudo Dalva vivia sua vida bem. Trabalhava há anos como empregada doméstica na mesma casa, com a mesma família. Não teve chances de avançar nos estudos e sempre foi boa de serviço. Lavava, passava, cozinhava e arrumava com a rapidez de um raio. A única nuvem no horizonte da vida de Dalva era o filho Bernardo. Para seu infortúnio (ou b ê nção) teve complicações no parto que a impossibilitaram de gerar ou...

Sideral

A sala de recepção do ateliê de costura estava chei a . As mulheres, todas eufóricas, comentavam todos os tipos de assuntos, aguardando a prova de seus vestidos. Foi então que entrou a mais aguardada delas: Suzana. Não se pode dizer que 25 anos de casamento é pouca coisa. Suzana entendia perfeitamente o significado disso, ainda mais por estar n uma estatística exígua e cada vez mais rara: a das mulheres casadas e felizes. Ela era, muito, muitíssimo feliz. Era muito invejada por isso, mas não ligava, pois estava acima desses sentimentos mesquinhos. Tinha conhecido Flávio ainda na adolescência. Ele frequentava o colegial e ela ainda no ginásio. Ficava espiando pela janela da sala de aula quando ele entrava no colégio. Era com certeza o garoto mais bonito da escola inteira. Nem era; Flávio era um varapau que só falava com meia dúzia de garotos. Era zoado por ser “certinho” demais e usava uma calça xadrez medonha junto com o uniforme. Mas Suzana gostava e ficou corada quando for...