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Mostrando postagens de 2018

Caminhante

A cafeteria estava relativamente cheia naquela manhã cinzenta. Fazia um friozinho suportável e todos estavam ávidos por uma bebida quente, não só para aquecer o corpo, mas os corações. Não era diferente com Regina. Ela era pessoa conhecida ali. Há anos frequentava assiduamente o espaço, sendo parte da própria história do lugar. Entrou sem cerimônia e sentou-se em uma das mesas. Ficou olhando vagamente pela janela a neblina suave que enchia a rua. - O que vai ser hoje, Dona Regina? - Deixa disso menina...É Regina, já falei. A atendente sorriu sem responder. - Me traga um café puro, sem açúcar. O de sempre. - Ok. Algo pra comer? - Não, não. Obrigada. A moça foi ao balcão confirmar o pedido enquanto Regina voltou a contemplar o tempo pela janela. Olhou suas mãos e suas unhas, sempre mal cuidadas. Viu os sinais do tempo lhe lembrando do tanto que já tinha passado por ali. Sorriu amargamente com o canto da boca. O cheiro do café misturado ao cheiro doce das guloseimas era muito agr...

Perdidos & achados

Gláucia e Tadeu caminhavam de mãos dadas pela calçada da praça central de Alto Castelo. Os cabelos cor de trigo da moça brilhavam ao sol de outono e isso encantava seu namorado: rapaz mais que orgulhoso em ter conquistado a mais disputada jovem da cidade. No alto dos seus vinte anos ela já era uma mulher linda, parecia uma artista de novela. Ele, não menos bonito, estava feliz por ela ter aceitado seu pedido de casamento e falavam sobre os últimos detalhes. Aliás, este era o assunto mais comentado do momento por onde se andasse por ali. Cidade pequena era assim: qualquer movimento era notícia por dias a fio. Tudo estava certo para que desse certo. Casa própria, emprego estável. Tadeu era um excelente marceneiro e já fazia seu trabalho melhor que o pai que o ensinara. Ele próprio fizera boa parte da mobília de sua futura residência, dando de presente à futura esposa uma linda cama toda entalhada, com detalhes em flores  e folhas. O trabalho ficou tão bem feito que uma revista de de...

A lenda

Desde cedo Jandira sabia como seria sua vida. Isolada entre três irmãos homens, era a queridinha do seu pai, um militar austero e dedicado a família. Aquela ordem e regras pra tudo já lhe davam uma vaga ideia do que ela seria: seria como sua mãe. Sua mãe. Uma mulher que praticamente não falava. Passava o tempo entretida com os afazeres da casa e sorria sem jeito a qualquer coisa. Sempre modesta nas suas roupas, todas bem fora de moda para os anos 60, era muito reservada. Mas era uma boa esposa e uma boa mãe, como sempre elogiava seu pai. Em vias de terminar o ensino normal fora apresentada ao filho de um amigo de seu pai, também militar. Moço, bom, ia a igreja todos os domingos, seguiria a carreira militar para o grande orgulho da família e isso acabou chamando a atenção do pai de Jandira. O moço sempre estava por ali, acompanhado do pai, não perdendo nunca a chance de esboçar um leve sorrisinho toda às vezes que a via. Um dia acabaram por conversar um pouquinho e ela achou adorável ...

Rabo de Galo

Mais um dia. Mais um protocolo, mais uma vida ensaiada. Foram as primeiras frases que vieram à cabeça de Michela naquela manhã. Michela Carvalhaes, 30 anos, casada, rica, linda e entediada. Sim, ou será que só gente feia e pobre é que sente isso? Não, não é. Nascida Michela Romano, filha de uma tradicional família de industriais de ascendência italiana, desde cedo tivera o que todo mundo acha fundamental pra ser feliz: dinheiro. Nunca soube o que foi esperar por um presente, nunca precisou pedir duas vezes por nada. Os pais sempre fizeram questão de desde cedo lhe dar o melhor: colégios, cursos, viagens, experiências. Uma das garotas mais badaladas de São Paulo. Foi capa de revistas locais, conheceu artistas famosos. Namorou por anos o homem mais desejado da época: André Carvalhaes. O casamento foi digno das manchetes de jornais por mais de uma semana. Eles formavam o que em seu meio era considerado o "casal de ouro": ricos, bonitos e famosos. Mas naquela manhã Michela fazia...

Voyeur

Tudo é possível da janela de um arranha-céu. Você vê tantas coisas ao mesmo tempo! É impossível negar a satisfação de lidar com tantas possibilidades ao mesmo tempo. Um carro brilhando a luz do sol, uma sacola voando ao vento, um pequeno tumulto na rua... Tudo ao alcance da imaginação. Aníbal abriu a janela de seu escritório exatamente às 8 da manhã. Fazia um calor bem suportável naquele dia de sol de outono. A brisa delicada fazia um sol muito peculiar ao passar naquela altura. Seu andar estava localizado bem no meio do prédio. A vida de um advogado nem sempre é animada. Papéis, petições, ações. E mesmo para ele que tentava não levar sua profissão tão a sério às vezes era massacrante. Aquele dia, no entanto, estava peculiar. O telefone não havia tocado, a secretária não o solicitou nenhuma vez e ninguém havia lhe chamado. Ficou curioso sobre tamanha calma e foi na recepção. - Nossa... nem parece que ainda é terça-feira! A secretária sorriu com delicadeza. -Os outros ainda não che...

Cupom

A manhã começara atribulada para Marli. O salão aos sábados costumava bombar de gente e nem sempre a patroa estava de bom humor nesses dias. Ora brigava com o marido, ora com os filhos, oras com todos juntos. Mas ela ia cumprir tudo que havia prometido a si mesma: ser positiva e otimista, em qualquer situação. Assim os livros de auto-ajuda empilhados no seu criado mudo diziam. Comeu metade de um pão com presunto e queijo, sem o café, e foi pra rua. Passou a mão na maleta de manicure e apressou o passo. Não queria ver a cara de bunda da Simone pra cima dela. Havia algumas clientes marcadas para ela logo pela manhã. Mal pisou na porta do salão e uma delas chegou perto, gritando. - Como é que é? Vai me atender ou não? Marli olhou no relógio. Eram 07:57. A desgraçada não sabia que o salão começava funcionar às 8? -Vamo, vamo sim. Foi pra dentro ajeitando tudo para não tem mais problemas. Encheu a bacia com água, dispôs as toalhas, arrumou os esmaltes e buscou os apetrechos no forno ...