Rabo de Galo
Mais um dia. Mais um protocolo, mais uma vida ensaiada. Foram as primeiras frases que vieram à cabeça de Michela naquela manhã. Michela Carvalhaes, 30 anos, casada, rica, linda e entediada. Sim, ou será que só gente feia e pobre é que sente isso? Não, não é.
Nascida Michela Romano, filha de uma tradicional família de industriais de ascendência italiana, desde cedo tivera o que todo mundo acha fundamental pra ser feliz: dinheiro. Nunca soube o que foi esperar por um presente, nunca precisou pedir duas vezes por nada. Os pais sempre fizeram questão de desde cedo lhe dar o melhor: colégios, cursos, viagens, experiências. Uma das garotas mais badaladas de São Paulo. Foi capa de revistas locais, conheceu artistas famosos. Namorou por anos o homem mais desejado da época: André Carvalhaes. O casamento foi digno das manchetes de jornais por mais de uma semana. Eles formavam o que em seu meio era considerado o "casal de ouro": ricos, bonitos e famosos. Mas naquela manhã Michela fazia um esforço sobre-humano para levantar-se da cama.
Outra maldita reunião de família. Aquelas risadas...Ah! Que impaciência! Ver aquelas cara laqueadas, com maquiagem importada, expressões faciais artificiais a deprimiam. Pareciam personagens de uma peça de teatro, todos encenando seus papéis de maneira tão canastrona que às vezes ela se perguntava se não tinham vergonha de passar por tal situação. Mas ela não tinha tempo para pensar mais nada pois o marido já estava na porta aguardando sua presença.
-Querida! Você ainda está na cama? Vamos...Não podemos nos atrasar.
Michela foi para o banheiro. Olhou para todo aquele mármore róseo e não sabia exatamente o que fazer. A banheira estava cheia, as toalhas estavam impecavelmente arrumadas, a espuma subia.
-Ok. Vamos lá.
Entrou na água morna e começou a repassar a experiência de uns dias atrás em sua mente. Só isso tirou um sorriso de seu rosto perfeito. Fechou os olhos. Respirava suavemente e sorria a cada lembrança vinda. Mas isso merece uma explicação mais ampla, quase minuciosa.
Há quase um ano atrás, voltando da casa da mãe, o motorista pediu para que passassem antes em sua casa, para que pudesse entregar algo a sua esposa. O problema é que ele morava em um bairro distante, na periferia da cidade. Michela não importou-se de fazer o desvio.
-Prometo ser breve. A senhora pode ficar tranquila.
Pois bem, não havia nenhum problema, contanto que ela não tivesse que se aborrecer com mais nada. A visita na casa da mãe era sempre chata: conversas vazias, regadas a fofocas e frivolidades. Nunca voltava de lá satisfeita.
Chegando na casa do motorista, ela olhou ao redor sem abaixar o vidro. O lugar era horroroso. Ruas tortuosas, casas mal construídas. Quase defronte ao lugar estacionado havia um bar. Mesmo sendo 5 horas da tarde já estava lotado.
Michela ficou observando. A completa falta de classe, as palavras grosseiras, as mulheres com roupas vulgares, que ela jamais usaria nem numa fantasia de Carnaval, o cheiro de gordura dos espetinhos na brasa, a sujeira nas paredes do estabelecimento, tudo, tudo tudo isso encantaram seus sentidos. Como eles são livres! Ficou fascinada com a maneira displicente como todos ali se comportavam, sem pudores, sem critérios.
O motorista cumpriu o prometido. Entrou no carro com a formalidade de sempre, receoso de que sua ousadia lhe causasse problemas com o patrão.
-Espero que a senhora não tenha esperado demais...
-Não. Podemos ir.
Michela ficou olhando o bar até o motorista fazer a curva da rua. Ficou pensando naquele lugar por várias horas. Lembrou-se que nunca em sua vida entrara em nenhum ambiente como aquele. Aquelas mulheres com aquelas roupas, com aqueles cigarros nos dedos, rindo debochadamente para tudo que lhes era dito. Era outro universo. Sua mente começou a trabalhar.
Primeiro convenceu seu marido a deixar o carro em suas mãos para fazer coisas triviais, dispensando o motorista em alguns dias da semana.
-Não tem necessidade de motorista toda hora, André...
-Mas você não gosta de dirigir!
-Mas se eu não pegar o carro nunca vou desaprender! E é só de vez em quando...
-Ok. Você quem sabe.
Depois foi ao Brás, bairro característico pela venda de roupas. Procurou pelas lojas o que queria: roupas coloridas, extravagantes, cheias de fendas e decotes. A vendedora ficou surpresa.
- É pra senhora?
-Sim. Algum problema?
A vendedora fez que não com a cabeça. E ia perder uma venda daquelas por falar demais?
Pronto. Agora só precisava botar seu plano em prática. Deixou o carro estacionado no metrô, depois de botar as roupas dentro do carro. Era outra pessoa. Usava uma saia curtíssima que por pouco não lhe deixava as calcinhas de fora. Uma blusa decotada arrematava o traje. Sim, era assim mesmo que ela queria.
Procurou um bar nas imediações. Sem muito esforços encontrou: sujo, mal organizado, cheio de gente que não dava a mínima pra tudo isso. Sentou no balcão.
-Uma cerveja, por favor.
Estava acostumada a tomar as melhores bebidas, incluindo a cerveja. Aquela água choca desceu pela garganta sem que ela se importasse com a qualidade.
-Você tem cigarros?
O atendente olhava curioso pra aquela mulher. Ela não pertencia àquele lugar. O que estaria pretendendo?
-Tenho sim senhora. Qual?
Michela havia parado de fumar por exigência do marido. Nem sabia o que pedir.
-Me dá qualquer um.
O homem espertamente pegou o mais caro. Sabia que aquela mulher tinha dinheiro pra pagar.
-Obrigada.
Percebeu que ao redor todos prestavam a atenção nela. Por mais que tivesse tido cuidado em usar roupas para parecer-se com um deles os seus gestos e suas palavras refinadas a entregavam. Resolveu fumar e beber em silêncio. Ficou ouvindo cada palavra, a forma como eras ditas, o tom certo. Pediu a conta e saiu. Teve o cuidado de pagar em dinheiro.
E assim, todas as semanas, ao menos duas vezes, Michela ia a um botequim ,dos mais vagabundos fazer suas experiências. Começou a pegar o jeito: já falava como eles, ria como eles, bebia e fumava como eles. O cheiro nauseabundo, as palavras grosseiras, o perfume barato, as roupas ridículas e os olhares maliciosos destoavam totalmente da cor da champagne, da lavanda que exalava pela sua casa, das sedas e linhos de suas roupas, do toque delicado da mão do seu marido no seu ombro. E como ela amava! Amava não ver nenhum sorriso clareado, nenhuma silhueta lipoaspirada, nadinha daquelas caras engomadas e preservadas com plástica. E isso foi seu segredo para sobreviver às reuniões de família, às aulas de equitação, às recepções de André, a tudo. Cada vez que ela entrava num bar novo, cada vez que experimentava uma iguaria repugnante como um torresmo ou uma cebola curtida, cada vez que bebia uma cachaça de um trago só era como se ela fosse outra pessoa, outra existência.
Não uma vez voltara aos mesmos lugares. Fez contatos, amizades. Não inventou um nome falso. só mudou um detalhe: para eles era Michele.
E assim foi levando sua vida dupla. Sem culpa, sem remorso. Ela era a linda esposa de André e a alegre frequentadora dos botecos mais nojentos de toda a cidade.
Um dia, rindo alegre e faceira depois de uma rodada de cerveja, viu um rosto conhecido. Era seu motorista. Puxa! Ela estava exatamente no bairro dele! Fingiu que ia no banheiro. Lá de dentro conseguia escutar tudo que era dito lá fora.
-E aí, chapa? Tudo em cima?
-Tudo. Vim pegar umas cervejas lá pra casa.
Reconheceu a voz de seu motorista.
-E o trabalho? Como vai?
-Numa boa. Minha patroa é uma santa. Todo mundo lá é bom.
Michela sabia que ele estava falando a verdade. Para ele e pra todo mundo, ela era a boneca de porcelana, a intocável, a criatura ilibada que nada nem ninguém podia macular. Ela era a "mulher modelo".
-Vou indo que a minha " patroa" tá esperando!!! Até mais.
Ela esperou mais um tempo para ter certeza que ela já havia ido. Saiu, mas não quis continuar. Foi para casa.
E mesmo tendo ouvido o que ouviu não ficou dissuadida de continuar. E continuou muitas vezes, quantas quis.
Era Carnaval e o marido queria viajar. Michela já tinha os planos dela e fez o marido ir na frente.
-Nos encontramos depois...Eu fico com minha mãe e depois vou.
Mesmo contrariado ele consentiu.
Michela havia combinado com um grupo de participar de um bloco, na Zona Leste. No dia, apareceu vestida com a roupa mais justa e decotada que encontrou. Já não destoava mais: era uma deles. Sabia dissimular os gestos, as expressões agora fluíam de sua boca. O samba rolava e ela soltava-se sem inibições: dançava, rebolava, ria alto e bebia.
Estavam todos muito empolados quando chegou uma equipe de televisão. Michela não deu por isso de imediato e continuou a dançar, festejar. De repente viu um rosto conhecido: Cristina Rios. A maldita colunista social que já fizera milhares de entrevistas com ela e que podia estar em qualquer lugar de São Paulo, mas estava justo ali! O primeiro impulso foi sumir na multidão, para não ser vista.
Cristina estava fazendo uma matéria sobre como as camadas mais populares comemoravam o carnaval. Estava vestida de prateado com uma lindíssima máscara de predarias. As mulheres ao redor queriam aparecer de todo jeito. Cristina foi falando um pouco com cada uma delas, com perguntinhas clichês.
-O que você está achando do bloco?
Cada uma foi dando sua resposta e Cristina apenas sorria seu sorriso gélido. Pobre era pobre, dava alergia.
Michela ficou um tempo parada olhando as entrevistas sem dizer nada. Não percebeu mas estava cada vez mais próxima. Sem querer foi chegando perto, mais perto. Não sentiu vontade de recuar, de ficar embrenhada no mar de gente. Ela queria falar com Cristina Rios. Ela também queria aparecer.
-Olá! E aí? Como está se sentindo?
Michela já estava com a maquiagem totalmente desfeita, mas isso não impediu Cristina Rios de reconhecer seu rosto.
-Michela? É você?
Cristina não sabia nem o que dizer. Estava paralisada diante daquela mulher que em diversas ocasiões estivera com ela, entre queijos e vinhos, em desfiles das mais conceituadas "maisons", naquele palacete que ela chamava de casa.
-Oie!!!! Tudo bem???
Michela não mudou a maneira de falar e Cristina continuava paralisada, com seu microfone na mão. Tomando dimensão do que estava acontecendo pediu pra cortar a gravação.
-Estamos ao vivo, Michela! Todo mundo vai te ver! Cadê seu marido?
-Viajou. Vai ou não vai fazer a entrevista?
Cristina percebeu que tinha ali um trunfo. Ela estava entre eles, mas não era um deles. Era uma colunista social, era paga pra falar da vida daquela gente. Inconscientemente lhe veio a satisfação de mostrar a podridão da alta roda, os desvios das classe abastadas. Olhou as roupas de Michela com uma falsa indiferença.
-Tudo bem. Só não me acuse depois de não ter te avisado.
Pediu a câmara pra elas e virou-se para Michela. Com um olhar frio e ferino perguntou:
-O que você está achando do bloco?
Michela agarrou o microfone e começou a falar no tom de voz mais desproporcional possível.
-Eu estou amando isso aqui!!! É tudo de bom!!! Quero mais!!!
Cristina não conseguiu prosseguir. Por mais que quisesse era a sua reputação que estava em jogo também. Poderiam dizer que ela havia feito tudo por vingança e despeito.
-Ok. Obrigada.
Saiu dali sem olhar para trás. Não queria mesmo.
Michela só saiu dali quando acabou tudo. Dançou a noite toda, abraçou todos, riu, gritou. Quando olhou seu telefone celular havia centenas de ligações perdidas. Do marido, da mãe, de amigas de infância. Não desligou o aparelho, mas não atendeu nenhuma delas.
Não quis ir pra casa. Foi para um hotel barato nas proximidades. Cheirava a creolina, mas ela não deu por isso. Pagou no cartão, pois tinha gasto todo o dinheiro em cerveja. Queria aproveitar antes que bloqueassem. Deitou na cama e sorriu. A roupa suada, cheia de confetes grudados, eram sua armadura. Ela era corajosa demais!
Nascida Michela Romano, filha de uma tradicional família de industriais de ascendência italiana, desde cedo tivera o que todo mundo acha fundamental pra ser feliz: dinheiro. Nunca soube o que foi esperar por um presente, nunca precisou pedir duas vezes por nada. Os pais sempre fizeram questão de desde cedo lhe dar o melhor: colégios, cursos, viagens, experiências. Uma das garotas mais badaladas de São Paulo. Foi capa de revistas locais, conheceu artistas famosos. Namorou por anos o homem mais desejado da época: André Carvalhaes. O casamento foi digno das manchetes de jornais por mais de uma semana. Eles formavam o que em seu meio era considerado o "casal de ouro": ricos, bonitos e famosos. Mas naquela manhã Michela fazia um esforço sobre-humano para levantar-se da cama.
Outra maldita reunião de família. Aquelas risadas...Ah! Que impaciência! Ver aquelas cara laqueadas, com maquiagem importada, expressões faciais artificiais a deprimiam. Pareciam personagens de uma peça de teatro, todos encenando seus papéis de maneira tão canastrona que às vezes ela se perguntava se não tinham vergonha de passar por tal situação. Mas ela não tinha tempo para pensar mais nada pois o marido já estava na porta aguardando sua presença.
-Querida! Você ainda está na cama? Vamos...Não podemos nos atrasar.
Michela foi para o banheiro. Olhou para todo aquele mármore róseo e não sabia exatamente o que fazer. A banheira estava cheia, as toalhas estavam impecavelmente arrumadas, a espuma subia.
-Ok. Vamos lá.
Entrou na água morna e começou a repassar a experiência de uns dias atrás em sua mente. Só isso tirou um sorriso de seu rosto perfeito. Fechou os olhos. Respirava suavemente e sorria a cada lembrança vinda. Mas isso merece uma explicação mais ampla, quase minuciosa.
Há quase um ano atrás, voltando da casa da mãe, o motorista pediu para que passassem antes em sua casa, para que pudesse entregar algo a sua esposa. O problema é que ele morava em um bairro distante, na periferia da cidade. Michela não importou-se de fazer o desvio.
-Prometo ser breve. A senhora pode ficar tranquila.
Pois bem, não havia nenhum problema, contanto que ela não tivesse que se aborrecer com mais nada. A visita na casa da mãe era sempre chata: conversas vazias, regadas a fofocas e frivolidades. Nunca voltava de lá satisfeita.
Chegando na casa do motorista, ela olhou ao redor sem abaixar o vidro. O lugar era horroroso. Ruas tortuosas, casas mal construídas. Quase defronte ao lugar estacionado havia um bar. Mesmo sendo 5 horas da tarde já estava lotado.
Michela ficou observando. A completa falta de classe, as palavras grosseiras, as mulheres com roupas vulgares, que ela jamais usaria nem numa fantasia de Carnaval, o cheiro de gordura dos espetinhos na brasa, a sujeira nas paredes do estabelecimento, tudo, tudo tudo isso encantaram seus sentidos. Como eles são livres! Ficou fascinada com a maneira displicente como todos ali se comportavam, sem pudores, sem critérios.
O motorista cumpriu o prometido. Entrou no carro com a formalidade de sempre, receoso de que sua ousadia lhe causasse problemas com o patrão.
-Espero que a senhora não tenha esperado demais...
-Não. Podemos ir.
Michela ficou olhando o bar até o motorista fazer a curva da rua. Ficou pensando naquele lugar por várias horas. Lembrou-se que nunca em sua vida entrara em nenhum ambiente como aquele. Aquelas mulheres com aquelas roupas, com aqueles cigarros nos dedos, rindo debochadamente para tudo que lhes era dito. Era outro universo. Sua mente começou a trabalhar.
Primeiro convenceu seu marido a deixar o carro em suas mãos para fazer coisas triviais, dispensando o motorista em alguns dias da semana.
-Não tem necessidade de motorista toda hora, André...
-Mas você não gosta de dirigir!
-Mas se eu não pegar o carro nunca vou desaprender! E é só de vez em quando...
-Ok. Você quem sabe.
Depois foi ao Brás, bairro característico pela venda de roupas. Procurou pelas lojas o que queria: roupas coloridas, extravagantes, cheias de fendas e decotes. A vendedora ficou surpresa.
- É pra senhora?
-Sim. Algum problema?
A vendedora fez que não com a cabeça. E ia perder uma venda daquelas por falar demais?
Pronto. Agora só precisava botar seu plano em prática. Deixou o carro estacionado no metrô, depois de botar as roupas dentro do carro. Era outra pessoa. Usava uma saia curtíssima que por pouco não lhe deixava as calcinhas de fora. Uma blusa decotada arrematava o traje. Sim, era assim mesmo que ela queria.
Procurou um bar nas imediações. Sem muito esforços encontrou: sujo, mal organizado, cheio de gente que não dava a mínima pra tudo isso. Sentou no balcão.
-Uma cerveja, por favor.
Estava acostumada a tomar as melhores bebidas, incluindo a cerveja. Aquela água choca desceu pela garganta sem que ela se importasse com a qualidade.
-Você tem cigarros?
O atendente olhava curioso pra aquela mulher. Ela não pertencia àquele lugar. O que estaria pretendendo?
-Tenho sim senhora. Qual?
Michela havia parado de fumar por exigência do marido. Nem sabia o que pedir.
-Me dá qualquer um.
O homem espertamente pegou o mais caro. Sabia que aquela mulher tinha dinheiro pra pagar.
-Obrigada.
Percebeu que ao redor todos prestavam a atenção nela. Por mais que tivesse tido cuidado em usar roupas para parecer-se com um deles os seus gestos e suas palavras refinadas a entregavam. Resolveu fumar e beber em silêncio. Ficou ouvindo cada palavra, a forma como eras ditas, o tom certo. Pediu a conta e saiu. Teve o cuidado de pagar em dinheiro.
E assim, todas as semanas, ao menos duas vezes, Michela ia a um botequim ,dos mais vagabundos fazer suas experiências. Começou a pegar o jeito: já falava como eles, ria como eles, bebia e fumava como eles. O cheiro nauseabundo, as palavras grosseiras, o perfume barato, as roupas ridículas e os olhares maliciosos destoavam totalmente da cor da champagne, da lavanda que exalava pela sua casa, das sedas e linhos de suas roupas, do toque delicado da mão do seu marido no seu ombro. E como ela amava! Amava não ver nenhum sorriso clareado, nenhuma silhueta lipoaspirada, nadinha daquelas caras engomadas e preservadas com plástica. E isso foi seu segredo para sobreviver às reuniões de família, às aulas de equitação, às recepções de André, a tudo. Cada vez que ela entrava num bar novo, cada vez que experimentava uma iguaria repugnante como um torresmo ou uma cebola curtida, cada vez que bebia uma cachaça de um trago só era como se ela fosse outra pessoa, outra existência.
Não uma vez voltara aos mesmos lugares. Fez contatos, amizades. Não inventou um nome falso. só mudou um detalhe: para eles era Michele.
E assim foi levando sua vida dupla. Sem culpa, sem remorso. Ela era a linda esposa de André e a alegre frequentadora dos botecos mais nojentos de toda a cidade.
Um dia, rindo alegre e faceira depois de uma rodada de cerveja, viu um rosto conhecido. Era seu motorista. Puxa! Ela estava exatamente no bairro dele! Fingiu que ia no banheiro. Lá de dentro conseguia escutar tudo que era dito lá fora.
-E aí, chapa? Tudo em cima?
-Tudo. Vim pegar umas cervejas lá pra casa.
Reconheceu a voz de seu motorista.
-E o trabalho? Como vai?
-Numa boa. Minha patroa é uma santa. Todo mundo lá é bom.
Michela sabia que ele estava falando a verdade. Para ele e pra todo mundo, ela era a boneca de porcelana, a intocável, a criatura ilibada que nada nem ninguém podia macular. Ela era a "mulher modelo".
-Vou indo que a minha " patroa" tá esperando!!! Até mais.
Ela esperou mais um tempo para ter certeza que ela já havia ido. Saiu, mas não quis continuar. Foi para casa.
E mesmo tendo ouvido o que ouviu não ficou dissuadida de continuar. E continuou muitas vezes, quantas quis.
Era Carnaval e o marido queria viajar. Michela já tinha os planos dela e fez o marido ir na frente.
-Nos encontramos depois...Eu fico com minha mãe e depois vou.
Mesmo contrariado ele consentiu.
Michela havia combinado com um grupo de participar de um bloco, na Zona Leste. No dia, apareceu vestida com a roupa mais justa e decotada que encontrou. Já não destoava mais: era uma deles. Sabia dissimular os gestos, as expressões agora fluíam de sua boca. O samba rolava e ela soltava-se sem inibições: dançava, rebolava, ria alto e bebia.
Estavam todos muito empolados quando chegou uma equipe de televisão. Michela não deu por isso de imediato e continuou a dançar, festejar. De repente viu um rosto conhecido: Cristina Rios. A maldita colunista social que já fizera milhares de entrevistas com ela e que podia estar em qualquer lugar de São Paulo, mas estava justo ali! O primeiro impulso foi sumir na multidão, para não ser vista.
Cristina estava fazendo uma matéria sobre como as camadas mais populares comemoravam o carnaval. Estava vestida de prateado com uma lindíssima máscara de predarias. As mulheres ao redor queriam aparecer de todo jeito. Cristina foi falando um pouco com cada uma delas, com perguntinhas clichês.
-O que você está achando do bloco?
Cada uma foi dando sua resposta e Cristina apenas sorria seu sorriso gélido. Pobre era pobre, dava alergia.
Michela ficou um tempo parada olhando as entrevistas sem dizer nada. Não percebeu mas estava cada vez mais próxima. Sem querer foi chegando perto, mais perto. Não sentiu vontade de recuar, de ficar embrenhada no mar de gente. Ela queria falar com Cristina Rios. Ela também queria aparecer.
-Olá! E aí? Como está se sentindo?
Michela já estava com a maquiagem totalmente desfeita, mas isso não impediu Cristina Rios de reconhecer seu rosto.
-Michela? É você?
Cristina não sabia nem o que dizer. Estava paralisada diante daquela mulher que em diversas ocasiões estivera com ela, entre queijos e vinhos, em desfiles das mais conceituadas "maisons", naquele palacete que ela chamava de casa.
-Oie!!!! Tudo bem???
Michela não mudou a maneira de falar e Cristina continuava paralisada, com seu microfone na mão. Tomando dimensão do que estava acontecendo pediu pra cortar a gravação.
-Estamos ao vivo, Michela! Todo mundo vai te ver! Cadê seu marido?
-Viajou. Vai ou não vai fazer a entrevista?
Cristina percebeu que tinha ali um trunfo. Ela estava entre eles, mas não era um deles. Era uma colunista social, era paga pra falar da vida daquela gente. Inconscientemente lhe veio a satisfação de mostrar a podridão da alta roda, os desvios das classe abastadas. Olhou as roupas de Michela com uma falsa indiferença.
-Tudo bem. Só não me acuse depois de não ter te avisado.
Pediu a câmara pra elas e virou-se para Michela. Com um olhar frio e ferino perguntou:
-O que você está achando do bloco?
Michela agarrou o microfone e começou a falar no tom de voz mais desproporcional possível.
-Eu estou amando isso aqui!!! É tudo de bom!!! Quero mais!!!
Cristina não conseguiu prosseguir. Por mais que quisesse era a sua reputação que estava em jogo também. Poderiam dizer que ela havia feito tudo por vingança e despeito.
-Ok. Obrigada.
Saiu dali sem olhar para trás. Não queria mesmo.
Michela só saiu dali quando acabou tudo. Dançou a noite toda, abraçou todos, riu, gritou. Quando olhou seu telefone celular havia centenas de ligações perdidas. Do marido, da mãe, de amigas de infância. Não desligou o aparelho, mas não atendeu nenhuma delas.
Não quis ir pra casa. Foi para um hotel barato nas proximidades. Cheirava a creolina, mas ela não deu por isso. Pagou no cartão, pois tinha gasto todo o dinheiro em cerveja. Queria aproveitar antes que bloqueassem. Deitou na cama e sorriu. A roupa suada, cheia de confetes grudados, eram sua armadura. Ela era corajosa demais!
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