Perdidos & achados
Gláucia e Tadeu caminhavam de mãos dadas pela calçada da praça central de Alto Castelo. Os cabelos cor de trigo da moça brilhavam ao sol de outono e isso encantava seu namorado: rapaz mais que orgulhoso em ter conquistado a mais disputada jovem da cidade. No alto dos seus vinte anos ela já era uma mulher linda, parecia uma artista de novela. Ele, não menos bonito, estava feliz por ela ter aceitado seu pedido de casamento e falavam sobre os últimos detalhes. Aliás, este era o assunto mais comentado do momento por onde se andasse por ali. Cidade pequena era assim: qualquer movimento era notícia por dias a fio.
Tudo estava certo para que desse certo. Casa própria, emprego estável. Tadeu era um excelente marceneiro e já fazia seu trabalho melhor que o pai que o ensinara. Ele próprio fizera boa parte da mobília de sua futura residência, dando de presente à futura esposa uma linda cama toda entalhada, com detalhes em flores e folhas. O trabalho ficou tão bem feito que uma revista de decoração foi fazer uma entrevista com ele, sendo motivo de muito orgulho para toda a cidade.
Mas do que os ventos, porém, o outono de 1975 trouxe outras novidades. Uma empresa de construção de imóveis resolveu investir em um grande empreendimento por ali. Fariam um condomínio fechado, coisa muito comum nos EUA e que já estava virando moda no Brasil.
- Nossa! Quanta gente vem pra Alto Castelo! - Disse Gláucia ao ver um ônibus cheio de pessoas parar na frente do único hotel da cidade.
-Sim...vão fazer casas naquele sítio próximo da estrada de saída da cidade. Uma pena.
-Por que? Gláucia não entendeu o pesar do noivo.
-Gosto da tranquilidade daqui. Mas gente vindo pra cá? Sei não.
Gláucia não respondeu nada. Mas internamente lhe incomodava aquela pacatez que Tadeu tinha em algumas situações. Mas não criou caso: estava interessada em ver os visitantes. Nunca tinha nada naquele fim de mundo mesmo!
No meio do tumulto viu o prefeito cumprimentando um rapaz. Estava de terno e por isso ficou em destaque. Usava a barba rente ao rosto e era alto, bem alto. Não foi difícil notar sua presença. O prefeito fazia graça e tentava parecer menos matuto do que era, falando rebuscado até demais.
-Minha gente, este aqui é o Ângelo, o dono da construtora que vai fazer o condomínio... Uma salva de palmas pra ele!
O pequeno grupo aglomerado na frente do hotel aplaudiu timidamente o rapaz que ficou um tanto embaraçado. Ele vinha de São Paulo e estava visivelmente cansado. Sorriu de maneira desajeitada.
-Boa tarde a todos. Gostaria de dizer que estou muito feliz por estar aqui...
Gláucia não soube dizer o que exatamente era: se a voz macia e doce, se as roupas elegantes e bem alinhadas, se o sorriso ou tudo isso junto, mas o seu olhar não conseguiu desviar daquele moço. Tão fino, tão sério! Tadeu não percebeu nada e continuou a prestar a atenção na fala do rapaz.
-Queremos dar a essa cidade um empreendimento de grande valor, que traga investimentos a Alto Castelo. Vamos garantir que muitas coisas irão melhorar. Aguardem!
E sem mais milongas apertou afetuosamente a mão do prefeito e entrou no hotel.
Vários dias de passaram depois daquilo mas os pensamentos de Gláucia ficaram naquela cena. O rosto bonito de Ângelo não saía de sua cabeça. Não podendo mais resistir a curiosidade e ao desejo de vê-lo de novo foi até o hotel onde ele estava. Ficou andando como quem não quer ali na frente pra não dar bandeira, pois todos ali a conheciam. Não demorou muito para que ele aparecesse, tão bem vestido quando da primeira vez.
Gláucia teve a mesma sensação de antes: um tremor perpassou seu corpo todo. Mas desta vez ele a viu. Sorriu com polidez.
-Boa tarde!
Ela precisava ser natural o máximo possível.
-Boa tarde... Está gostando da cidade?
-Sim, sim...muito. Bem agradável aqui.
-É...verdade.
Na falta do que responder Ângelo sorriu novamente.
-Você faz o que?
-Sou engenheiro. Sou eu que vou coordenar o trabalho aqui na construção do condomínio.
-Hum...
Por mais que quisesse Gláucia não ia conseguir ter um assunto muito consistente com aquele moço por muito tempo. Ele havia ido pra universidade, visto coisas, vivido novas experiências. Ela era uma jovenzinha do interior que tinha ido a praia com os pais algumas vezes. Mas ainda assim insistiu.
- Interessante... Tenho vontade de ir pra faculdade também.
Os dois conversaram por horas ali na calçada mesmo sob o olhar do porteiro, que apesar da discrição não perdeu a chance de observar tudo. Depois ela se despediu.
-Tenho que ir...
-Que pena... Muito bom falar com você!
-Eu também... Gláucia corou de leve.
-Se puder apareça.
-Sim...Vou aparecer.
A moça caminhou e percebeu que não usava sua aliança de noivado. Ela havia tirado pra lavar uma peça de roupa e simplesmente não havia posto novamente. Era a primeira vez que isso acontecia em um ano.
E assim aconteceu: todos os dias ela passava por ali e Ângelo a estava esperando. E todos os dias ela estava cada vez mais distante de Tadeu. O entusiasmo que lhe faltava com os preparativos do casamentos lhe sobrava nas conversas com o forasteiro. E em menos de um mês depois da primeira vez que ela havia visto aquele homem pela primeira vez na porta do único hotel da cidade os dois iam embora juntos. Gláucia deixou uma carta para os pais em cima da cômoda do quarto e outra para o noivo na mesinha de centro da sala de estar. Pegou seus documentos, suas roupas mais bonitas e pôs numa pequena valise, que pôs no porta-malas do carro de Ângelo. Saiu devagar e sumiram pela estrada, sem serem vistos.
Gláucia teve uma vida mais que bem sucedida ao lado de Ângelo. Como havia sonhado, foi para a faculdade: cursou arquitetura para poder trabalhar com o marido. Juntos fizeram grandes projetos, viajaram para vários países, fizeram fortuna e tiveram grande reconhecimento. Desfrutaram de muitos bons momentos juntos por 40 anos.
Nada estava mal na vida de Gláucia, exceto pelo fato de que nunca mais havia voltado a Alto Castelo. Embora nunca tivesse escondido onde estava e com quem estava na carta que havia deixado, jamais foi procurada por quem quer que seja de lá. Nem um telefonema, nem uma carta ou e-mail. Nem mesmo Tadeu entrou em contato com ela uma única vez sequer para saber de seu paradeiro. Isso nunca a incomodou nenhuma vez nesses anos todos, mas de uns tempos pra cá resolveu incomodar. Nenhuma carta? Nenhum contato? Será que eles receberam as cartas que ela tinha deixado para eles?
De repente todas estas perguntas que antes não faziam diferença nenhuma começaram a lhe intrigar. Estranhamente a opinião e a atenção daquelas pessoas que havia deixado pra trás lhe interessavam. O condomínio que Ângelo havia começado lá tinha sido concluído há muitos tempos mas eles não foram para a festa de inauguração. Fora isso, nada sabia a respeito de lá. Ficou tomada por uma estranha curiosidade que não passava. Então, sem o conhecimento total do marido, resolveu ir até Alto Castelo rever seu passado e resolver as coisas que havia deixado pra trás. Não seria fácil, mas tentaria.
Apesar de estar com 60 anos Gláucia ainda estava muito bonita e jovial. Antes de entrar no carro e pegar a estrada olhou-se minuciosamente no espelho grande do quarto. Saiu sem maiores explicações
-Você volta ainda hoje?
-Acredito que sim, querido. Te ligo mais tarde.
-Boa viagem. Te amo.
Alto Castelo não era perto mas dava pra chegar num mesmo período do dia. Em algumas horas começou a ver as silhuetas da cidade. O condomínio estava bem na entrada e havia ficado bem maior do que ela previa. De resto, tudo continuava igual. Pouquíssimas mudanças aqui ou ali. Parou o carro na praça central e ficou sem saber o que fazer primeiro. Quem devia procurar? Seus pais? Tadeu?
O carro começou a chamar a atenção dos olhares curiosos. Gláucia resolveu então ir a casa dos pais.
A casa ainda era a mesma. Estava bem conservada, bonitinha. O portão estava com cadeado, diferente de antes. Na ausência de campainha Gláucia teve que bater palmas. Sua mãe abriu a porta.Estava visivelmente velha. Custou a reconhecer a filha.
-Mãe...eu...
Ela não teve tempo de concluir a frase.
-O que que você tá fazendo aqui, sua ordinária???
Gláucia sentiu seu rosto queimar e não conseguiu dizer mais nada. A mãe, por sua vez, não parou.
-Sai da minha porta que eu não tenho nada que falar com você!!! - O tom era ameaçador e a esta altura a velha senhora estava aos berros.
Nisto aparece o pai. Velho, velho. Não havia ódio em seu olhar. Vendo a mulher alterada e gritando saiu de casa para acudi-la. Olhou a filha, bem vestida e em um carro caro. Só pôde dizer.
-Gláucia... vai embora. Não tem mais nada aqui pra você. Por favor, vai embora.
E sem dizer mais nenhuma palavra, saiu levando a esposa pelo braço sem nunca olhar pra trás.
Sem cerimônia Gláucia entrou no carro e saiu dali. A notícia de sua presença correu rápido e logo várias pessoas a olhavam. Estava se preparando pra deixar a cidade quando lembrou de algo: Tadeu. Ainda havia Tadeu. Deu meia-volta e seguiu o antigo endereço da casa dos pais do ex-noivo.
Já não era a mesma casa. No lugar, havia uma outra, mais nova. Junto a ela, um barracão enorme. Ficou um momento decidindo o que faria , mas logo foi recebida por um rapaz.
-Pois não, senhora?
O olhar era familiar demais! Quem seria?
-Oi...boa tarde... eu...
Nisso, um homem chegou atrás dela. A voz, um pouco mais agravada, não deixava dúvida: Tadeu. Esse dirigiu-se ao rapaz primeiro.
-Filho...deixe que eu atendo a senhora. Pode ir.
Então Tadeu tinha um filho! Ela e Ângelo nunca quiseram porque haviam focado tudo em suas carreiras. Ela própria havia adiado isso por achar que não tinha o dom materno. Mas ele tivera um filho...
-Pois não.
O tom de Tadeu era formal e seco. Não havia nenhum sentimento em sua voz. Estava visivelmente marcado pelo tempo e pouco sobrava daquele rosto de antes.
-Tadeu... Eu nem sei o que dizer. Eu fui na casa de meus pais agora e foi horrível. Eu nem sei por onde começar.
Tadeu não disse nada. Isso deixou Gláucia mais embaraçada.
-Eu queria saber como vocês estão e...
-Estamos bem.
O tom não mudava. Tadeu parecia uma rocha que ressonava frases que não tinham nenhuma emoção.
- Eu queria que você soubesse que eu desejo sua felicidade e desejo o melhor pra você. Vi que agora você tem um filho... Fico feliz por você. De verdade. Eu esperava que...
-Esperava o que? Pela primeira vez a voz de Tadeu mudou de tom.
Gláucia não respondeu nada. A mudança brusca na voz de Tadeu embargou qualquer tentativa de dizer alguma coisa.
-Senhora... eu não sei o motivo que te trouxe aqui. Também não me interessa. Quero que a senhora saiba que seja lá o que for que tenha acontecido passou e eu estou vivendo minha vida. Agora eu vou voltar a trabalhar. Boa tarde.
Tadeu entrou barracão adentro e o filho foi lhe perguntar algo. Depois sumiram.
Gláucia ficou um tempo imóvel e depois seguiu para o carro. Fez a manobra para entrar na estrada que dava acesso a São Paulo e seguiu pensando em tudo que havia visto e ouvido. De repente concluiu que tinha feito tudo certo: era uma mulher bem sucedida graças a decisão de ter deixado Alto Castelo anos atrás. Ela adorava a vida que tinha construído e adorava ser quem ela era. Se tivesse ficado, estaria morando naquela casa com o barracão e seria uma dona-de-casa sem nenhuma novidade na vida. Saberia viver sem o afeto da família, pois nesses anos todos nem tinha entrado em contato mesmo... Sim. Ela tinha tomado a decisão certa. Respirou aliviada em ter resolvido esta curiosidade dentro de si que a consumira por meses. Agora era voltar pra sua vida. Não tinha mesmo mais nada ali que fosse dela. Graças a deus.
Tudo estava certo para que desse certo. Casa própria, emprego estável. Tadeu era um excelente marceneiro e já fazia seu trabalho melhor que o pai que o ensinara. Ele próprio fizera boa parte da mobília de sua futura residência, dando de presente à futura esposa uma linda cama toda entalhada, com detalhes em flores e folhas. O trabalho ficou tão bem feito que uma revista de decoração foi fazer uma entrevista com ele, sendo motivo de muito orgulho para toda a cidade.
Mas do que os ventos, porém, o outono de 1975 trouxe outras novidades. Uma empresa de construção de imóveis resolveu investir em um grande empreendimento por ali. Fariam um condomínio fechado, coisa muito comum nos EUA e que já estava virando moda no Brasil.
- Nossa! Quanta gente vem pra Alto Castelo! - Disse Gláucia ao ver um ônibus cheio de pessoas parar na frente do único hotel da cidade.
-Sim...vão fazer casas naquele sítio próximo da estrada de saída da cidade. Uma pena.
-Por que? Gláucia não entendeu o pesar do noivo.
-Gosto da tranquilidade daqui. Mas gente vindo pra cá? Sei não.
Gláucia não respondeu nada. Mas internamente lhe incomodava aquela pacatez que Tadeu tinha em algumas situações. Mas não criou caso: estava interessada em ver os visitantes. Nunca tinha nada naquele fim de mundo mesmo!
No meio do tumulto viu o prefeito cumprimentando um rapaz. Estava de terno e por isso ficou em destaque. Usava a barba rente ao rosto e era alto, bem alto. Não foi difícil notar sua presença. O prefeito fazia graça e tentava parecer menos matuto do que era, falando rebuscado até demais.
-Minha gente, este aqui é o Ângelo, o dono da construtora que vai fazer o condomínio... Uma salva de palmas pra ele!
O pequeno grupo aglomerado na frente do hotel aplaudiu timidamente o rapaz que ficou um tanto embaraçado. Ele vinha de São Paulo e estava visivelmente cansado. Sorriu de maneira desajeitada.
-Boa tarde a todos. Gostaria de dizer que estou muito feliz por estar aqui...
Gláucia não soube dizer o que exatamente era: se a voz macia e doce, se as roupas elegantes e bem alinhadas, se o sorriso ou tudo isso junto, mas o seu olhar não conseguiu desviar daquele moço. Tão fino, tão sério! Tadeu não percebeu nada e continuou a prestar a atenção na fala do rapaz.
-Queremos dar a essa cidade um empreendimento de grande valor, que traga investimentos a Alto Castelo. Vamos garantir que muitas coisas irão melhorar. Aguardem!
E sem mais milongas apertou afetuosamente a mão do prefeito e entrou no hotel.
Vários dias de passaram depois daquilo mas os pensamentos de Gláucia ficaram naquela cena. O rosto bonito de Ângelo não saía de sua cabeça. Não podendo mais resistir a curiosidade e ao desejo de vê-lo de novo foi até o hotel onde ele estava. Ficou andando como quem não quer ali na frente pra não dar bandeira, pois todos ali a conheciam. Não demorou muito para que ele aparecesse, tão bem vestido quando da primeira vez.
Gláucia teve a mesma sensação de antes: um tremor perpassou seu corpo todo. Mas desta vez ele a viu. Sorriu com polidez.
-Boa tarde!
Ela precisava ser natural o máximo possível.
-Boa tarde... Está gostando da cidade?
-Sim, sim...muito. Bem agradável aqui.
-É...verdade.
Na falta do que responder Ângelo sorriu novamente.
-Você faz o que?
-Sou engenheiro. Sou eu que vou coordenar o trabalho aqui na construção do condomínio.
-Hum...
Por mais que quisesse Gláucia não ia conseguir ter um assunto muito consistente com aquele moço por muito tempo. Ele havia ido pra universidade, visto coisas, vivido novas experiências. Ela era uma jovenzinha do interior que tinha ido a praia com os pais algumas vezes. Mas ainda assim insistiu.
- Interessante... Tenho vontade de ir pra faculdade também.
Os dois conversaram por horas ali na calçada mesmo sob o olhar do porteiro, que apesar da discrição não perdeu a chance de observar tudo. Depois ela se despediu.
-Tenho que ir...
-Que pena... Muito bom falar com você!
-Eu também... Gláucia corou de leve.
-Se puder apareça.
-Sim...Vou aparecer.
A moça caminhou e percebeu que não usava sua aliança de noivado. Ela havia tirado pra lavar uma peça de roupa e simplesmente não havia posto novamente. Era a primeira vez que isso acontecia em um ano.
E assim aconteceu: todos os dias ela passava por ali e Ângelo a estava esperando. E todos os dias ela estava cada vez mais distante de Tadeu. O entusiasmo que lhe faltava com os preparativos do casamentos lhe sobrava nas conversas com o forasteiro. E em menos de um mês depois da primeira vez que ela havia visto aquele homem pela primeira vez na porta do único hotel da cidade os dois iam embora juntos. Gláucia deixou uma carta para os pais em cima da cômoda do quarto e outra para o noivo na mesinha de centro da sala de estar. Pegou seus documentos, suas roupas mais bonitas e pôs numa pequena valise, que pôs no porta-malas do carro de Ângelo. Saiu devagar e sumiram pela estrada, sem serem vistos.
Gláucia teve uma vida mais que bem sucedida ao lado de Ângelo. Como havia sonhado, foi para a faculdade: cursou arquitetura para poder trabalhar com o marido. Juntos fizeram grandes projetos, viajaram para vários países, fizeram fortuna e tiveram grande reconhecimento. Desfrutaram de muitos bons momentos juntos por 40 anos.
Nada estava mal na vida de Gláucia, exceto pelo fato de que nunca mais havia voltado a Alto Castelo. Embora nunca tivesse escondido onde estava e com quem estava na carta que havia deixado, jamais foi procurada por quem quer que seja de lá. Nem um telefonema, nem uma carta ou e-mail. Nem mesmo Tadeu entrou em contato com ela uma única vez sequer para saber de seu paradeiro. Isso nunca a incomodou nenhuma vez nesses anos todos, mas de uns tempos pra cá resolveu incomodar. Nenhuma carta? Nenhum contato? Será que eles receberam as cartas que ela tinha deixado para eles?
De repente todas estas perguntas que antes não faziam diferença nenhuma começaram a lhe intrigar. Estranhamente a opinião e a atenção daquelas pessoas que havia deixado pra trás lhe interessavam. O condomínio que Ângelo havia começado lá tinha sido concluído há muitos tempos mas eles não foram para a festa de inauguração. Fora isso, nada sabia a respeito de lá. Ficou tomada por uma estranha curiosidade que não passava. Então, sem o conhecimento total do marido, resolveu ir até Alto Castelo rever seu passado e resolver as coisas que havia deixado pra trás. Não seria fácil, mas tentaria.
Apesar de estar com 60 anos Gláucia ainda estava muito bonita e jovial. Antes de entrar no carro e pegar a estrada olhou-se minuciosamente no espelho grande do quarto. Saiu sem maiores explicações
-Você volta ainda hoje?
-Acredito que sim, querido. Te ligo mais tarde.
-Boa viagem. Te amo.
Alto Castelo não era perto mas dava pra chegar num mesmo período do dia. Em algumas horas começou a ver as silhuetas da cidade. O condomínio estava bem na entrada e havia ficado bem maior do que ela previa. De resto, tudo continuava igual. Pouquíssimas mudanças aqui ou ali. Parou o carro na praça central e ficou sem saber o que fazer primeiro. Quem devia procurar? Seus pais? Tadeu?
O carro começou a chamar a atenção dos olhares curiosos. Gláucia resolveu então ir a casa dos pais.
A casa ainda era a mesma. Estava bem conservada, bonitinha. O portão estava com cadeado, diferente de antes. Na ausência de campainha Gláucia teve que bater palmas. Sua mãe abriu a porta.Estava visivelmente velha. Custou a reconhecer a filha.
-Mãe...eu...
Ela não teve tempo de concluir a frase.
-O que que você tá fazendo aqui, sua ordinária???
Gláucia sentiu seu rosto queimar e não conseguiu dizer mais nada. A mãe, por sua vez, não parou.
-Sai da minha porta que eu não tenho nada que falar com você!!! - O tom era ameaçador e a esta altura a velha senhora estava aos berros.
Nisto aparece o pai. Velho, velho. Não havia ódio em seu olhar. Vendo a mulher alterada e gritando saiu de casa para acudi-la. Olhou a filha, bem vestida e em um carro caro. Só pôde dizer.
-Gláucia... vai embora. Não tem mais nada aqui pra você. Por favor, vai embora.
E sem dizer mais nenhuma palavra, saiu levando a esposa pelo braço sem nunca olhar pra trás.
Sem cerimônia Gláucia entrou no carro e saiu dali. A notícia de sua presença correu rápido e logo várias pessoas a olhavam. Estava se preparando pra deixar a cidade quando lembrou de algo: Tadeu. Ainda havia Tadeu. Deu meia-volta e seguiu o antigo endereço da casa dos pais do ex-noivo.
Já não era a mesma casa. No lugar, havia uma outra, mais nova. Junto a ela, um barracão enorme. Ficou um momento decidindo o que faria , mas logo foi recebida por um rapaz.
-Pois não, senhora?
O olhar era familiar demais! Quem seria?
-Oi...boa tarde... eu...
Nisso, um homem chegou atrás dela. A voz, um pouco mais agravada, não deixava dúvida: Tadeu. Esse dirigiu-se ao rapaz primeiro.
-Filho...deixe que eu atendo a senhora. Pode ir.
Então Tadeu tinha um filho! Ela e Ângelo nunca quiseram porque haviam focado tudo em suas carreiras. Ela própria havia adiado isso por achar que não tinha o dom materno. Mas ele tivera um filho...
-Pois não.
O tom de Tadeu era formal e seco. Não havia nenhum sentimento em sua voz. Estava visivelmente marcado pelo tempo e pouco sobrava daquele rosto de antes.
-Tadeu... Eu nem sei o que dizer. Eu fui na casa de meus pais agora e foi horrível. Eu nem sei por onde começar.
Tadeu não disse nada. Isso deixou Gláucia mais embaraçada.
-Eu queria saber como vocês estão e...
-Estamos bem.
O tom não mudava. Tadeu parecia uma rocha que ressonava frases que não tinham nenhuma emoção.
- Eu queria que você soubesse que eu desejo sua felicidade e desejo o melhor pra você. Vi que agora você tem um filho... Fico feliz por você. De verdade. Eu esperava que...
-Esperava o que? Pela primeira vez a voz de Tadeu mudou de tom.
Gláucia não respondeu nada. A mudança brusca na voz de Tadeu embargou qualquer tentativa de dizer alguma coisa.
-Senhora... eu não sei o motivo que te trouxe aqui. Também não me interessa. Quero que a senhora saiba que seja lá o que for que tenha acontecido passou e eu estou vivendo minha vida. Agora eu vou voltar a trabalhar. Boa tarde.
Tadeu entrou barracão adentro e o filho foi lhe perguntar algo. Depois sumiram.
Gláucia ficou um tempo imóvel e depois seguiu para o carro. Fez a manobra para entrar na estrada que dava acesso a São Paulo e seguiu pensando em tudo que havia visto e ouvido. De repente concluiu que tinha feito tudo certo: era uma mulher bem sucedida graças a decisão de ter deixado Alto Castelo anos atrás. Ela adorava a vida que tinha construído e adorava ser quem ela era. Se tivesse ficado, estaria morando naquela casa com o barracão e seria uma dona-de-casa sem nenhuma novidade na vida. Saberia viver sem o afeto da família, pois nesses anos todos nem tinha entrado em contato mesmo... Sim. Ela tinha tomado a decisão certa. Respirou aliviada em ter resolvido esta curiosidade dentro de si que a consumira por meses. Agora era voltar pra sua vida. Não tinha mesmo mais nada ali que fosse dela. Graças a deus.
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