A lenda

Desde cedo Jandira sabia como seria sua vida. Isolada entre três irmãos homens, era a queridinha do seu pai, um militar austero e dedicado a família. Aquela ordem e regras pra tudo já lhe davam uma vaga ideia do que ela seria: seria como sua mãe.
Sua mãe. Uma mulher que praticamente não falava. Passava o tempo entretida com os afazeres da casa e sorria sem jeito a qualquer coisa. Sempre modesta nas suas roupas, todas bem fora de moda para os anos 60, era muito reservada. Mas era uma boa esposa e uma boa mãe, como sempre elogiava seu pai.
Em vias de terminar o ensino normal fora apresentada ao filho de um amigo de seu pai, também militar. Moço, bom, ia a igreja todos os domingos, seguiria a carreira militar para o grande orgulho da família e isso acabou chamando a atenção do pai de Jandira. O moço sempre estava por ali, acompanhado do pai, não perdendo nunca a chance de esboçar um leve sorrisinho toda às vezes que a via. Um dia acabaram por conversar um pouquinho e ela achou adorável o jeito como ele a tratava: sempre gentil e cavalheiro. Com o tempo ele começou a aparecer sozinho e um desses dias de brisa suave a pediu em namoro.
O pai ficou lisonjeado. Poderia haver partido melhor para sua filha? Um moço honrado, com tantos predicados... A mãe sorriu do mesmo jeito de sempre; talvez desse no mesmo se um meteoro caísse sobre a casa e explodisse tudo: lá estaria ela com sua cara apatetada e inexpressiva. Jandira gostou de ver que depois de tanto tempo sozinha alguém havia olhado pra ela. Não era feia, era uma moça concentrada nos estudos e achava muito interessante ter um namorado.
Enfim, o curso normal já havia terminado. O namoro estava em quase um ano e nada de muito novo havia acontecido. O namorado a respeitava muito e sempre estavam juntos na presença de um dos irmãos de Jandira. Assim ninguém poderia dizer nada. A reputação da moça estava a salvo. Jandira sempre recebia mimos do namorado: bombons, flores, cartões com frases apaixonadas. Ela estava feliz, como não estaria? O pai sempre dizia assim.
Pois bem; era hora de pensar no casamento. Formada e com idade, Jandira podia sonhar em ter seu próprio lar, sua vida  com seu marido e filhos. O pai conversou com o rapaz e com seu pai pra tratarem de tudo, na presença de Jandira e da mãe, que sorria abestada como sempre. A princípio tudo estava bem: Jandira concordava que era a hora certa e o noivado estava marcado. Uma festa foi feita, com direito a docinhos e música do Roberto Carlos para os convidados.
Tudo fluía maravilhosamente. O noivo estava mais atencioso do que nunca, com a expectativa do casamento. Estava cada vez mais difícil conter-se ao desejo de possuir a moça e mesmo resolvendo suas necessidades de homem no lupanar da cidade vizinha ainda sim a queria mais do que nunca. Ela seria sua, enfim.
Salão, bolo, igreja, vestido. Tudo estava muito bem organizado pelas famílias e a euforia era enorme em torno deste casamento, que uniria os objetivos de duas famílias. Jandira olhava tudo com entusiasmo e contentamento.
Na antevéspera do casamento, logo após deixar o noivo no portão, Jandira entrou e foi para seu quarto. Pôs a camisola e foi para o espelho da penteadeira para escovar o vasto cabelo negro. Sentou-se na banqueta e pôs-se a olhar para si. 18 anos recém completados. Era uma mulher adulta que iria se casar em breve. Ficou olhando para si mesma por um tempo que nem mesmo ela saberia dizer o quanto foi. Mas várias coisas foram ditas naquele olhar pra si mesma.    Ela não queria mais estar ali. Não queria mais casamento, não queria noivo, nem bolo e muito menos vestido. Ela tinha odiado o vestido: havia pedido pra ser algo parecido com o da Jackie Kennedy mas o pai disse que não era bom. Era ridículo! Era tudo ridículo! Aquele noivo tarado que ficava segurando as mãos para não apalpá-la lhe deu repulsa.
Então, como se não se importasse com mais nada na vida, ela se levantou, pôs o vestido xadrez que ganhara da madrinha e a deixava mais magra, pegou sua bolsa e saiu. Saiu pela porta da cozinha, sem ser vista por ninguém. Saiu pra sempre, sem jamais dizer adeus.
A tragédia só foi descoberta quase um dia depois. Mesmo tendo a seu dispor todas as ferramentas, toda a ajuda para encontrar a filha, todo o apoio dos vizinhos e das adjacências, o militar orgulhoso jamais teve nenhum sinal. A mãe, mais apatetada do que nunca, entrou em um surto  nervoso do qual nunca saiu.  O noivo, intrigado, ficou em choque o tempo suficiente; tempos depois superava o escândalo nos braços de outra moça.
Ninguém nunca soube o que aconteceu a Jandira. E a tragédia ganhou conotações de lenda. As suposições eram infinitas: uns diziam que tinha se aliado a um grupo comunista e morrido em ações de terrorismo; outros diziam que era prostituta em um cabaré da região, outros que havia virado andarilha louca e estava vagando por aí. Seja lá o que for, ela não queria ser encontrada e já tinha deixado isso claro. Ela queria sumir, pra sempre.

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