Cupom


A manhã começara atribulada para Marli. O salão aos sábados costumava bombar de gente e nem sempre a patroa estava de bom humor nesses dias. Ora brigava com o marido, ora com os filhos, oras com todos juntos. Mas ela ia cumprir tudo que havia prometido a si mesma: ser positiva e otimista, em qualquer situação. Assim os livros de auto-ajuda empilhados no seu criado mudo diziam.
Comeu metade de um pão com presunto e queijo, sem o café, e foi pra rua. Passou a mão na maleta de manicure e apressou o passo. Não queria ver a cara de bunda da Simone pra cima dela.
Havia algumas clientes marcadas para ela logo pela manhã. Mal pisou na porta do salão e uma delas chegou perto, gritando.
- Como é que é? Vai me atender ou não?
Marli olhou no relógio. Eram 07:57. A desgraçada não sabia que o salão começava funcionar às 8?
-Vamo, vamo sim.
Foi pra dentro ajeitando tudo para não tem mais problemas. Encheu a bacia com água, dispôs as toalhas, arrumou os esmaltes e buscou os apetrechos no forno esterilizador.
A cara da mulher não melhorou nada. Continuava fechada. Marli pediu pra que ela escolhesse um dos esmaltes de antemão.
-A senhora pode escolher para a mão e para o pé cores diferentes.
-Querida! Eu não passo outra cor que não seja vermelho!
-Tem vários tons de vermelho...pode escolher.
A mulher estava visivelmente testando a paciência dela.
Marli começou a trabalhar primeiro nos pés da cliente. A cara emburrada não mudava. Parecia monitorar o seu trabalho.
-Ai!
Marli ficou apreensiva.
- Sua burra! Você machucou meu dedo!
-Não senhora! A senhora puxou o pé!
- Você está dizendo que eu estou mentindo?
Nisso chegou Simone, a dona do salão.
- O que aconteceu?
- Essa sua pedicure! Machucou meu dedo.
Marli achou melhor não dizer nada.
-Imagine! Assim não dá!
Simone olhou para Marli e falou novamente com a mulher.
- Calma...vamos resolver a situação.
Marli não esperou Simone falar mais nada.
- Eu não vou mais fazer suas unhas. Com licença.
E sem dizer mais nada saiu e foi para a cozinha do salão. Estava tão nervosa que as lágrimas escorreram mesmo contra a sua vontade pelo rosto.
Um tempo depois Simone entrou na cozinha.
-Ah Marli! Ela é uma das nossas melhores clientes...
Marli quis dizer algo mas não saía.
-Se toda vez que você tiver problemas com uma cliente você sair assim não vai dar, hein?
O "não vai dar" de Simone era a ameaça mais conhecida entre as funcionárias do salão. Todas as vezes que era proferido o tal "não vai dar" alguém ia ser demitido. Marli levantou, finalmente.
-Não, não Marli.. Ela vai ser atendida pela Noemi. Você me ajuda com o cabelo de outra cliente.
Sem fazer ar contrariado, Marli foi ajudar a patroa. Mentalmente estava inquieta, mas não deixou transparecer.
Finalmente, entre um bobe e outro e muita conversa inútil entre mulheres o expediente acabou. Foi com alívio que ela olhou o  relógio e viu dar 18 horas. Mas um dia.
Voltou pra casa com sua maleta nas mãos, sacolejando dentro do ônibus. Pensando na vida.
Lembrou da mãe que a deixou na casa da avó ainda pequena pra seguir "carreira". Nunca soube ao certo que carreira era essa. Mandava dinheiro  de vez em quando e não aparecia nunca. Cresceu junto com um tio estranho e um cachorro magrelo. Quando teve chance de cair fora, foi o que fez. Ajudava a avó como podia, e não quis mais notícias da mãe. Que fosse pro inferno.
Não tinha sorte com os homens. Eram sempre as mesmas histórias: casados, complicados, carentes ou cornos. Assim foi ficando sozinha, em sua edícula, com suas samambaias.
Ás vezes ia no centro espírita pertinho de sua casa tomar um "passe" e assistir as palestras sobre os livros do Alan Kardec. Dava um conforto pra alma e fazia ela entender melhor as coisas. Sabia que a vida era cíclica e dava voltas e voltas. E a conformação a deixava menos amarga.
Tinha algumas amigas mas na maior parte do tempo estava sozinha. Tinha um rosto mimoso, mas muito melancólico. A franjinha no cabelo garantia um ar alegre àquela tristeza latente.
Chegou em casa e resolveu esquentar o resto de bife a parmegiana no jantar passado pra comer. Não queria saber de cozinha, estava cansada e chateada. As pessoas gostavam de tratar as pessoas mal? Sim. Isso a deixou muito mal.
Comeu sem vontade e viu preso a um imã, na geladeira, um cupom que valia a participação em um show de prêmios. Havia comprado um batonzinho de uma amiga e isso lhe deu direito a ele. Pegou e começou a pensar.
-Será que dá certo?
Preencheu e colocou dentro da maleta de trabalho. Na segunda-feira mandaria.
Foi pro chuveiro tomar seu banho pensando no seu possível "paquera". Raul era um rapaz que trabalhava bem em frente ao salão como recepcionista na guarita do estacionamento. Tinha uns 40 anos e era bem bonitão. Não fosse aquele bigode seria até mais. Andou dando umas olhadas pra ela há uns dias. Será que daria em algo?
Terminada a chuveirada, Marli pôs o camisola branca de bolinhas cor-de-rosa e foi deitar pra ver tevê. Era fãs desses programas de problemas domésticos. Estava passando uma briga de casal e ela divertiu-se vendo as pessoas jogando coisas umas nas outras.
-Gente! Que barraco!!!
Adormeceu sem perceber. Acordou super tarde no domingo e nem sabia ao certo o que fazer. Tinha tempo livre mas nada vinha a cabeça. Resolveu chamar uma colega pra dar uma saidinha no final da tarde; de repente surgia alguma paquera.
- Lu! Vamos dar uma saidinha?
-Hum...onde?
Marli estava totalmente por fora. Mas não quis deixar a amiga saber que estava prestes a virar uma ermitã.
-Sei lá. Dá uma ideia aí.
-Hum...já sei! Tem um barzinho aqui perto. Novo. Vamos?
-Beleza!
Horas depois estavam lá as duas., em uma mesinha. Lu estava vestida com uma roupa tão justa de Marli lhe passou um carão.
-Que é isso, mulher? Se você sentar esse vestido rasga!
-Vai ficar cuidando de mim, é?
Marli deu de ombros. Não estava em condições de censurar ninguém. Ela própria tinha exagerado na maquiagem: o batom vermelho estava marcando drasticamente a borda do copo de caipirinha.
Tinha uma bandinha tocando músicas do momento. Estava animado, era preciso reconhecer. Eram uns rapazes bonitinhos!
Marli levantou o dedo chamando o garçom, que veio rapidinho. De relance ela viu alguém conhecido. Raul estava umas mesas depois da delas. O rosto dela corou visivelmente.
-Hum...Olha lá Marli!
Lu não sabia das "impressões" de Marli e ela simplesmente não falou nada. Raul não parava de olhar para a mesa, o que fez com que Marli começasse a ficar sem jeito. De repente ele se levantou e foi em direção delas. Foi o suficiente para que ela quase deixasse o copo cair.
-Oi...
-Oi - as duas responderam quase que ao mesmo tempo.
-E aí? Tão gostando?
Lu já pulou na frente pra responder.
-Muito bom, né?
-É. E aí? Vamos dançar?
Marli sentiu um arrepio frio percorrer todo o seu corpo. Lu saiu para a pista com Raul sem ver a palidez da amiga que, sem querer, já estava tremendo levemente. De longe, sentada, ela viu os dois dançarem várias músicas, agarradinhos. Viu esse sussurrar no ouvido dela e ela sorrir. A forma cada vez mais íntima como ele segurava na cintura dela; os corpos cada vez mais próximos. O beijo.
Só não foi pior porque Marli teve o bom senso de sair antes. Deu sinal para Lu de que ia embora e nem soube se ela viu ou não. Sentiu-se tão idiota, tão ingênua, tão pateta que teve vontade de morrer. Chegou em casa sobressaltada, arrasada, triste. Era uma fodida mesmo! Só queria esquecer aquela merda de vida nem que fosse por uns segundos. Tomou umas gotinhas de homeopatia e tentou dormir. Pra sua sorte o sono veio.
Os dias passaram. Toda vez que Lu tentava contar alguma coisa sobre aquela noite Marli dava um jeito de não ouvir. Desconversava, arrumava uma cliente pra atender. Ela decidiu que não queria saber; pra que? Ela nunca saberia se Raul fez aquilo pra provocar ou se desde o começo já estava de olho em Lu. E que diferença fazia? Dane-se.
Entre as coisas do salão ela achou o cupom da sorte pra enviar. Aproveitou a hora do almoço e fez isso. Era só um cupom e pagou a postagem mínima. Ao menos não custaria caro para enviar, pensou.
Simone tinha resolvido fazer um treinamento com a equipe do salão sobre "novas tendências". Marli já franziu a cara porque seria mais uma daquelas longas chatices de sempre. As peruas precisavam de novidade? Ótimo! Teriam. Como previsto, foi longo e chato . Lu foi chegando perto e jogou a pergunta.
-É impressão minha ou você está brava comigo?
Marli nem teve tempo de responder.
-Olha Marli... O cara quis ficar comigo, tá? Não tenho culpa se ele não curtiu você.
O rosto de Marli ganhou uma expressão distante, mas firme. Aquilo era uma afronta.
-Eu não me lembro de ter falado nada. Você que está dizendo.
Lu levantou-se e foi para outro canto. O mal estar era visível entre as duas.
A partir de então elas mal se falavam. E um burburinho começou a se formar: Lu saiu dizendo que Marli estava com dor de cotovelo; Marli, por sua vez, dizia que era coisa da Lu. O fato é que Raul nunca mais foi visto por nenhuma das duas: estava de férias.
O tempo passou de novo. Marli estava esterilizando seus instrumentos quando o celular tocou, no bolso do jaleco. Ela não atendeu pois Simone estava de olho. Meia hora depois, novo toque do celular. Desta vez ela atendeu.
-Alô? Marli Oliveira?
-Sim. Pois não?
-Você comprou um batom da marca Louxou's?
Marli ficou sem saber o que responder. Que raio de pergunta era esta?
-Herrr... Sim. Comprei.
-Você enviou um cupom, não foi?
-Foi - a esta altura as coisas estavam começando a fazer sentido.
-Você acaba de ganhar o prêmio máximo da nossa promoção!!! Parabéns!!!!
Com alguma dificuldade Marli tentou dizer alguma coisa.
-É sério? Mesmo?????
-Sim! Estamos na porta do seu trabalho com nosso cheque simbólico e para uma entrevista!!! Venha nos receber!!! Você é a grande vencedora!!!!
Marli desligou o celular e olhou na porta. Já havia um alvoroço formado. Ela tirou o jaleco e olhou pra Simone, que não entendia nada. Passou por Lu, por todas as outras funcionárias do salão sem sequer vê-las.
-Esta é a nossa ganhadora!!!!
Um carro de som fazia um banzé infernal. Moças usando roupas com as cores da empresa vieram ao encontro dela, que mal sabia o que fazer. Um cheque enorme foi posto em suas mãos. Era muito, muito dinheiro.
Marli sorriu. Dane-se Simone, dane-se Lu, dane-se Raul. Dane-se a merda toda. Ela estava rica.
-Eu to rica, rica!!!! Rica!!!!









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