Luxo

Norberta. Nome horrível, vida pior. Era a mais velha de 6 irmãos, todos tão ou mais feios do que ela. O pai, querendo dar seu nome a um filho homem, não teve escolha quando ela nasceu: pois ficou Norberta.
Viviam num casebre improvisado às margens de um lixão, com outras tantas famílias em situação análoga à deles. Pobres, feios e sem perspectiva de nada além da luta pela sobrevivência. Pouca gente ali sabia sonhar.
Ninguém ligava pra escola, ninguém ligava pra futuro. O que o lixo trazia era a esperança daquele dia e pronto. Ninguém reclamava: a sina de cada um é coisa que não se questiona. Mas o jovem e sofrido coração de Norberta era diferente. Em meio aos despojos da cidade inteira sempre remediar pra ver o que tinha pra ela. Seja um vidro de perfume vazio que era lindo de viver, seja uma moldura de espelho velha, tudo era coisa pra ela. Dava um jeitinho daqui, dava um jeitinho dali e fazia aquilo parecer uma riqueza. Era sua maneira de fazer as coisas melhores.
Outro dia quase sai no tapa com outra catadora por causa de uma garrafa de vidro que por algum milagre estava ainda inteira. Norberta ficou encantada com aquele tom de azul e arabescos que mais pareciam uma joia. Protestou.
- Eu vi primeiro.  Faz o favor de me devolver!
- Pode ficar com essa porcaria aí! Que que eu vou fazer com isso???
Após os ânimos esfriarem, Norberta agarrou sua garrafa e foi pra casa. Lavou por dentro e por fora, deixando-a bem visível e reluzente. Colocou do lado, da sua cama, no quarto que dividia com 4 dos seus irmãos. O caçula dormia com os pais.
Norberta era motivo de riso por causa de coisas assim. Debochavam de sua devoção por essas micharias. Zombavam dela.
- Pega aquela fralda suja cheia de bichinhos desenhados, Norberta!!!
As gargalhadas eram de todos. Até os irmãos iriam dela. Mesmo com ódio daquele lugar e daquelas pessoas ela nunca revidou. Abaixava a cabeça e ficava em silêncio.
Seu pai sempre pegava revistas velhas pra que ela pudesse ler. Apesar de ter abandonado a escola, Norberta lia tudo que caía em sua mão. Mas gostava mesmo daquelas revistas de celebridades, cheia de pessoas bonitas e bem vestidas, em lugares maravilhosos. Ela podia ficar horas vendo aquilo sem enjoar. À noite, quando todos dormiam, ela saía é ficava sentada na frente do casebre folheando as revistas, namorando aquele mundo que parecia distante, mas em sua mente parecia tão próximo.
Numa das remessas de livro veio um grande número dessas revistas. O pessoal ficou alvoroçado: o papel podia ser vendido é seria uma opção a mais pra garantir um dinheiro. Nem sempre vinha alumínio, que tinha o maior valor agregado. Norberta correu pra pegar algumas revistas pra si.
- Onde tu vai botar mais revista, mulher? Tu já tem um monte!
- Oche, mas "num"posso ter mais, pai?
- Tá bom.
Ela separou algumas pra ler à noite e voltou pra ajudar na coleta de recicláveis. Trabalhou feito uma condenada o dia todo é ainda ia disputar com os irmãos o direito de tomar um banho primeiro. Nem sempre conseguia, mas estava tão cansada que resolveu esperar pra ser a última. Assim podia demorar- se um pouco mais. Naquele dia o pai havia comprado carne e a mãe ia fazer picadinho, prato que eles amavam.
- Sai do banheiro, Norberta! Já já esvazia a caixa d'água!!!
Ela tinha pego um resto de sabonete líquido no lixo e estava usando. Na embalagem estava escrito "peônia & jasmim". Não tinha a menor ideia do que era peônia,  mas adorou o perfume. Estava livre daquele cheiro nojento que o lixão deixava nela.
Foi jantar na sala-cozinha apertada e por pouco não fica sem janta. Estavam esfomeados.
- Cambada de morto de fome!
- Deixa de ser besta! Tá aqui sua janta! - A mãe fez um prato pra ela.
Lembrou- se  das revistas e foi sentar no banquinho na frente da casa. A mãe chamou a atenção.
- Vê se não demora demais! Amanhã vem caminhão de monte pra descarregar!
- Tá certo, mãe.
Eram revistas de edição especial. Letras douradas, festas de gente importante. Mulheres com vestidos exclusivos chiquérrimos, corpos esculturais. Norberta lembrou das estrias que tinha pelo corpo e sentiu vergonha. Como era ruim ser pobre! Aquela gente sempre arrumada, sempre cheirosa, sempre bonita!
Numa das manchetes, estava a festa de aniversário de uma moça. O nome dela era Lola  Menescal. Lola??? Isso era nome? Norberta riu sozinha. Era a moça mais bonita que ela já tinha visto. Loira, cabelo enorme, volumoso e brilhante. Rosto e corpo lindos. Dentes branquíssimos num sorriso constante. Ela vestiu três vestidos diferentes na festa e em cada foto pessoas bonitas apareciam abraçadas com ela. Era uma perfeição.
Norberta sentiu algo estranho. Ficou imaginando que aquela moça devia tomar banho de espuma com aquele perfume do sabonete líquido que ela achou no lixo. Que devia usar o perfume daquele frasco vazio que ela pegou outro dia. Que devia ter bebido alguma coisa em uma garrafa de vidro parecida com aquela que ela disputou outra vez. Ela ficou maravilhada com a possibilidade disso ser verdade. Sorriu pra si mesma.
Começou a querer saber quem era Lola Menescal. Foi no Centro quis pesquisar na internet mais fatos sobre ela em uma "lan house": era uma socialite herdeira de uma família de banqueiros. Norberta lia avidamente, com encantamento de criança, tudo que podia sobre ela. Descobriu inclusive onde ela morava: numa mansão num dos bairros mais chiques da cidade. A mente de Norberta começou a fervilhar.
Tudo que podia sair sobre Lola Menescal ela sabia. Viu uma foto do quarto dela em uma revista e infernizou o pai pra fazer mais um quarto, agora só pra ela.
- Tá doida, Norberta?
- Eu peço a madeira pro cara da construção ali... Vamo, pai!
- Hum... Mas você vai ter que me ajudar.
Dobrar o pedreiro da construção pra dar os tapumes pra ela não foi fácil. Sem falar que era malicioso.
- Que que eu ganho se eu te der a madeira?
- Meu pai vai passar aqui.
- Hum.
E assim Norberta conseguiu seu quarto na casa. Pediu um pouco de cal pro vizinho, que tava fazendo um cômodo na sua casa.
- Vou caiar as paredes do  meu quarto...
Norberta tinha visto que o quarto da Lola era todo branco. Queria criar algo parecido. E começou a buscar no lixo qualquer coisa que pudesse se parecer com o mundo dela: móveis quebrados, tapetes velhos, enfeites. Tudo ia "criando" seu quartinho de boneca.
Um dia, tomou coragem e foi passar em frente da casa de Lola. Era muito grande, com jardim enorme. Olhou pela grade e ouviu o porteiro falar.
- Sai daí!
Norberta sentiu- se humilhada, mas seguiu em frente. Na calçada, viu na lixeira vários sacos de lixo da casa. A tentação de pegar foi enorme, mas viu que o porteiro ainda olhava pra ela e saiu andando. Mas um dia, voltou lá e remexeu tudo: achou coisas da própria Lola! Caixas de sapatos, embalagens vazias. Eram dela! E dia após dia, Norberta dava um jeitinho de sair do lixão e ir garimpar coisas que pudesse pegar pra si de Lola Menescal. Seu a sorte de achar uma pulseira quebrada, que usou no próprio pulso. Estava em estado de graça.
Um dia, viu no jornal que justamente na casa de Lola estavam precisando de uma copeira. Norberta nunca tinha saído do lixão, mas viu ali uma grande oportunidade de entrar naquela casa. De ver a vida que aquelas pessoas viviam. De ver seu sonho dourado de perto. Foi fazer a entrevista.
-Experiência?
-Já trabalhei como babá.
Mentira. Norberta só havia cuidado dos irmãos por motivos de força maior. 
- Hum... Podemos fazer um teste?
- Sim.
Pela primeira vez Norberta sentiu-se insegura. Não sabia exatamente o que fazer, mas resolveu arriscar.
- A senhora pode me mostrar.
Apesar de não ter terminado os estudos as leituras de revistas deram um vocabulário passável para Norberta. Ela tinha causado alguma impressão. E a governanta 


Comentários

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. "O luxo do lixo": triste-feliz paradoxo materializado em linhas entremeadas de profunda sensibilidade e beleza, resultado de um cuidadoso trato com a linguagem, com a construção das imagens e através da lente do narrador ou, por que não dizer; de Norberta

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