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Mostrando postagens de 2019

Reflexão

Estela sequer erguia os olhos. Ouvia cada palavra como se fosse uma sentenciada à morte. Por mais que quisesse dizer alguma coisa não podia: aquele aperto insuportável dentro do peito e o nó na garganta não deixavam. Era uma dor quase sobrihumana. - Eu gosto de você. Mas apesar de termos momentos maravilhosos juntos eu não posso violentar o sentimento de ninguém. Não é justo. Silêncio. Ninguém dizia mais nada. Tiago ainda quis dizer mais alguma coisa, mas sentiu que não era necessário. Como Estela não esboçou nenhuma reação, nem boa nem ruim, resolveu se despedir. - Eu preciso ir. Tchau. Estela continuou sentada onde estava. O coração doía, a alma doía, tudo doía. Ela não queria chorar ali, mas também não conseguia juntar forças pra se levantar e sair. Sentia -se quebrada por dentro. Mil coisas passavam pela sua cabeça. Sentia -se tola, boba mesmo. Acreditar em tanta mentira, tanta ilusão? Ela não foi enganada. O misto entre o que tinha sido bom e a decepção inundava sua mente ag...

Luxo

Norberta. Nome horrível, vida pior. Era a mais velha de 6 irmãos, todos tão ou mais feios do que ela. O pai, querendo dar seu nome a um filho homem, não teve escolha quando ela nasceu: pois ficou Norberta. Viviam num casebre improvisado às margens de um lixão, com outras tantas famílias em situação análoga à deles. Pobres, feios e sem perspectiva de nada além da luta pela sobrevivência. Pouca gente ali sabia sonhar. Ninguém ligava pra escola, ninguém ligava pra futuro. O que o lixo trazia era a esperança daquele dia e pronto. Ninguém reclamava: a sina de cada um é coisa que não se questiona. Mas o jovem e sofrido coração de Norberta era diferente. Em meio aos despojos da cidade inteira sempre remediar pra ver o que tinha pra ela. Seja um vidro de perfume vazio que era lindo de viver, seja uma moldura de espelho velha, tudo era coisa pra ela. Dava um jeitinho daqui, dava um jeitinho dali e fazia aquilo parecer uma riqueza. Era sua maneira de fazer as coisas melhores. Outro dia quase ...

Sensatez

Aquela noite era especial no Teatro Municipal. O espetáculo principal, "As coisas boas do Brasil" estrearia e metade do Rio de Janeiro estava na plateia; ou pelo menos quem importava. Pessoas da classe artística, políticos e gente da alta roda carioca estavam ali, para ver as vedetes mais celebradas do país apresentarem seu mais novo número. Havia um frenesi nos bastidores. Eliana estava deslumbrante: era sem dúvidas uma das mais bonitas. Beleza natural, sem aqueles recursos todos que a maioria das vedetes usavam. Tinha grandes olhos amendoados, com cílios imensos; boca bem feita, carnuda e convidativa. Seus cabelos crespos, castanhos claros, sempre alinhados, hoje estavam escondidos dentro do esplendor. De ancas largas e coxas grossas fazia suspirar os marmanjos que a viam dançar. Evidentemente que a inveja que sentiam dela era notória. Eliana não era de fazer esforço pra agradar: era despachada e sensual na medida certa. Apesar da vida de uma vedete não ser exatamente um ...

Não faz mais diferença

O celular não parava de vibrar. Independente disso, do outro lado da sala, ela continuava a arrumar a prateleira de livros. Os olhos tristes, porém decididos, denunciavam o choro de minutos atrás. Mas vamos com calma. Vamos voltar dois meses no tempo. Ou melhor, um ano e meio. Laura estava na mesa de um jantar chatíssimo. Ao lado, o esposo com cara de bunda e sem paciência pra esperar o jantar ser servido. Estava na mesma: era sempre a mesma coisa. A vida conjugal era tão modorrenta quanto aquele jantar mas ela suportava com bravura. Na vida era preciso fazer sacrifícios pra que as coisas dessem certo. Laura estava mais calma do que o habitual: o que lhe restava? Estava acostumando-se a se conformar. A vida com suas pequenas coisas, suas novidades insípidas já faziam parte de seu cotidiano. Era assim que as coisas funcionavam. Porém, do outro lado do salão de festas, um olhar lhe chamou a atenção. Ela já o conhecia de vista de alguns encontros de trabalho do esposo. Mas não era par...

Espectro

Na caixa de madeira rústica, arrumada cuidadosamente, tinha chá gelado, torradas, um pequeno pote de geleia de goiaba, um potinho de manteiga, muffins de chocolate amargo e uma mistura para cappuccino já na caneca devidamente embalada. Flaviana havia conferido cada detalhe minuciosamente para que nada desse errado. - Vou levar eu mesma! -Tem certeza? Perguntou a atendente da loja. - Sim... Eram um pouco mais que 07:00 da manhã e fazia um friozinho gostoso, daqueles que deixam o nariz geladinho. Flaviana segurou a caixa com cuidado e sentiu aquela queimação no estômago que lhe era muito familiar. A medida que se aproximava do destino mais sentia doer. Mas isso não fazia com que ela desistisse. Estava determinada a conquistar aquele homem, custasse o que custasse. Foi lembrando do dia que se conheceram. Ele tinha sido tão sorridente, tão doce com ela! Como esquecer algo assim? Chegou. Na portaria, o olhar do porteiro já era de intimidade. - Bom dia, moça... Ele ainda não chegou. Se...